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29 dezembro 2011

Senhor José

A certa altura do livro Galáxias, de Haroldo de Campos, um cantador "num fim de festafeira" na capital paraibana toma o turno da palavra e, acompanhado "apenas com um arame tenso um cabo e uma lata velha", num martelo galopado, canta: "para outros não existia aquela música não podia porque não podia popular / aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina".
As palavras do esmoler, transcriada pelo narrador de Galáxias, leva-nos a pensar sobre aquilo que faz uma canção ser definida como tal. O que e quem valida uma canção senão ela mesma em seu poder de cantar (ou não) o cantor e o ouvinte em suas unicidades?
O esmoler sabe que o que ele faz não agrada aos "burocratas da sensibilidade, que querem impingir ao povo, caritativamente, uma arte oficial, de 'boa consciência', ideologicamente retificada, dirigida", como Haroldo de Campos anota na apresentação do livro.
Recusando ser e ter um guia - "que deus te guie porque eu não posso guiar" -, o esmoler sabe e defende seu lugar no mundo: "pois isto é popular para os patronos do povo mas o povo cria mas o povo engenha mas o povo cavila / o povo é o inventalínguas na malícia da mestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso".
Ou seja, aparentemente sem serventia dentro de um sistema dominante de arte, aquele fio "esfaima circuladô de fulô" - põe em movimento (revitaliza circularmente, a cada novo/velho canto) os signos e símbolos do canto do povo de um lugar.
O esmoler de Galáxias, por outro lado, mas complementar ao anterior, faz-nos pensar nos mecanismos de guarda e preservação daquilo que é popular. No caso, a cultura e a tradição orais. Aliás, os termos "história", "tradição" e "oral" estão sempre muito próximos, como se um se validasse no outro e remetesse o indivíduo a certa essência, pureza. E nada é tão simples assim. Muito menos aqui no país encardido.
Sem me desviar do assunto, mas para trazer a questão um pouco ao espaço urbano, pergunto-me: remover um muro grafitado, pintado por um artista "de rua" para dentro de uma instituição (um museu, uma galeria) não seria destruir a obra?
Portanto, e voltando, como manter a alma de um pastoril em um disco? Como registrar (numa gravação eternizadora e, consequentemente, fixadora) a singularidade e a especificidade daquilo que em sua gênese é feito para ser do instante, do efêmero e, por isso mesmo, despertador do desejo de retorno, de circularidade da ilusão?
Sem dúvidas, como anota Paul Zumthor, no livro Introdução à poesia oral: "A passagem de um modo [oral direta, teatralizada] a outro [mediatizado] de recepção representa uma mudança cultural considerável". Porém, não há, salvo engano, uma solução definitiva para isso.
O certo é que essas questões não são novas e ainda atravessam - e não há consenso - o trabalho de muitos pesquisadores e brincantes contemporâneos: entre o desejo de "manter a coisa como estar" e a vontade de, pelo medo de perder, "registrar para a posteridade".
É do entrelugar do desejo e da vontade que sai o disco EncarnadoAzul (2011), assim, tudo junto, de Sandra Belê. Com seus coros e canções colhidas do livro Cancioneiro da Paraíba, de Idelette Muzart Fonseca, o disco de Belê presta um grande serviço à memória oral de nossa cultura justamente porque não tenta preservar o objeto.
Deslizante, cambiante e adaptável, porque atropófoga, a nossa cultura oral não precisa de salvadores. "Viemos para animar / por toda noite queremos cantar", diz a voz em "Senhor José". Aliás, o título do disco já sugere a aproximação dos cordões através da canção, das sonoridades.
Pedindo licença e atenção, o sujeito (voz coletiva) dessa canção sintetiza a própria pulsão daquilo que é uma canção: "Querer bem aos dois cordões [encarnado e azul] / queremos cantar". A defesa aqui é pelo direito de cantar e ser presença no mundo.
Unindo talento, tecnica e conhecimento de causa - "o coração daquilo" que canta -, Sandra Belê guarda, sem prender, as canções do pastoril que embala os festejos religiosos: quando ouvintes tornam-se intérpretes, cantores e mantem, enriquecem e transformam a tradição.
"Sou cigana do Egito / De tão longe a cantar / Para ver todo esse povo / Dançar, cantar e pular", versos de "A cigana", parecem querer definir a função da cantora, da canção, do disco.
Deste modo, podemos dizer que, ao trair a tradição oral, posto que a registra (fixa) em disco, Sandra Belê promove a permanência dessa mesma tradição, posto que agora poderá ser acessada noutros tempos e espaços. E as perdas na ausência da performance "por inteira" exige do ouvinte atento a sensibilização de outras áreas.
"Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. / Em cofre não se guarda coisa alguma. / (...) / Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por / ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, / isto é, estar por ela ou ser por ela", diz o oportuno poema "Guardar", de Antonio Cícero.
Seja como for, a querela amorosa e cruel entre indústria fonográfica e cultura oral/popular (tradição, história, memória) pode não ter benefícios para os dois lados - é cada vez mais difícil encontrar um cantador-de-feira com sua capacidade intrínseca de engajar o ouvinte por inteiro na performance, os pastoris rareiam, mesmo no Nordeste do Brasil, ao mesmo tempo em que pupulam tentativas de restaurações e revitalizações passadistas (de boutique) do "passado" -, mas o fato é que a canção não morre nunca. É ela que nos salva e não o contrário.

***

Senhor José
(Domínio público)

Senhor José, posso entrar?

Senhor José, licença
Pro pastoril brincar

Viemos para animar
Por toda noite queremos cantar

É do meu gosto
É da minha opinião
Querer bem aos dois cordões
Com prazer no coração
Eu hei de amar os dois cordões
Com prazer no coração

22 dezembro 2011

Flor da noite

A mãe é a primeira sereia do indivíduo. A força motriz a convidá-lo à vida, ao mesmo tempo em que aperta os laços da relação [de dependência] dialógica (mãe-filho). Ou seja, ela dá a corda, mas mantém o cordão (umbilical) bem ajustado.
E são nas cantigas de ninar - e suas ambiguidades entre o consolo e a provocação do medo - que as mães vão sustentando o filho, na voz, ao mesmo tempo em que se mantem viva (com função e sentido) no mundo. Oferecendo tempos e espaços suspensos na realidade vocal, a mãe insere o filho na descoberta-de-si.
Diferente do Ulisses homérico, o indivíduo comum não tem uma Circe a lhe advertir dos encantos das sereias. Somos urdidos e maturados já imersos no paraíso sonoro do canto (ulterior) sirênico.
É por isso que tenho dito que toda canção (mesmo mediatizada, serial, produto de mercado) tem algo de maternal: ela quer [en]cantar o ouvinte, dar-lhe sentidos ao absurdo. Tudo na canção se articula a fim de criar o paraíso esperado por cada ouvinte. A vida em abundância, porque ficcional - descolada do real, mas sem deixar de roçá-lo.
Seguindo este raciocínio, o disco Liebe Paradiso (2011), de Celso Fonseca e Ronaldo Bastos, é uma caixa sonora onde cada palavra dita (cantada) parece querer iluminar o recanto escuro de cada sujeito cancional a dançar em cada canção.
O requinte sonoro manipulado e atingido pelos produtores Duda Mello e Leonel Pereda, produtores é algo fundador na canção popular brasileira. As ambiências geradas - quase pinturas, mas algo superior, porque canção - de tão sofisticadas soam íntimas do ouvinte e promove o efeito estético da lindeza.
E é atento a esta intimidade que destaco "Flor da noite" cantada por Nana Caymmi. Temos aqui uma jóia rara. Avesso à simplicidade, ou à simplificação, das relações afetivas entre cantor e ouvinte, o sujeito da canção - feito vivo na voz de Nana - pontua aquilo que ele é: sereia/mãe a acalentar o indivíduo/filho solto na noite escura.
Só mesmo quem cantou com imprescindível beleza os versos "Hoje eu quero a rosa mais linda que houver / quero a primeira estrela que vier / para enfeitar a noite do meu bem" poderia recriar "Flor da noite", de Celso Fonseca e Ronaldo Bastos: uma canção de ninar adultos, de embalar afetos.
A voz de Nana Caymmi se acomoda com tamanha precisão ao desenho musical que o desejo do sujeito da canção acontece: a cama sonora e tépida está feita, basta ao ouvinte deitar e aproveitar a suave proteção (maternal) que ela oferece - o lugar onde o amor ficará em permanente estado de pausa e será acionado sempre que a canção retornar.
Aqui, a proteção maternal é travestida na fala de alguém que se despede: "Se outro alguém te lembrar de nós dois / Não diz pra esse alguém / O que passou e ficou pra depois / Seja o que for / Além de mim / Ninguém / Assim", diz o sujeito que, pela reminiscência do ouvinte, dialoga com os versos de "Detalhes", de Roberto e Erasmo Carlos: "Se um outro cabeludo aparecer na sua rua / e isso lhe trouxer saudades minhas a culpa é sua".
Tudo dorme, está em pausa. Tudo sonha, está vibrando nos amantes. É no sonho, na memória afetiva e onírica que tudo dorme, sonha e permanece. É no canto (ficção / sonho) levemente entoado de Nana Caymmi que tudo é real - "e o uni[verso] vai ao léu". E "como a lua rolando entre as estrelas", o ouvinte é puro estado estético.
Deste modo, "Flor da noite" dialoga tematicamente com "Tudo tudo tudo", de Caetano Veloso, e "Dorme", de Arnaldo Antunes. Especialmente quando estas dizem "Tudo dormir" e "Pensamento, dorme / Sensação, dorme", respectivamente, na tentativa de colocar o ouvinte em estado de repouso, de quietude.
O pronome indefinido "tudo", nas três canções, utilizando seus cancionistas do recurso de montagem cinematográfica einseiteniano e godardiano, não se refere a uma totalidade, mas ao gesto (humano) sempre fracassado e circular de busca pela completude - na repetição do pronome, do ato, do [re]canto. Tudo é uno: cantor e ouvinte, mãe e filho, amado e amante. Cada um é parte que (juntas) leva ao todo - tudo cantado.
O canto de "Flor da noite" é a "cirandas voltas de tu em mim", como diria o poema "Saudades" de Amador Ribeiro Neto. A canção circula e protege quem é cantado, no modo (passional) de cantar os significantes - carrossel em movimento, "sobre o mundo [íntimo] cai o véu", estrela - espalhados (feitos carrossel) na canção.
Destacar aqui todos os sons sutis e suas articulações dentro de Liebe Paradiso é algo impossível e soa incoerente diante da grandeza da obra. É preciso ouvir: sem pressa, ao sabor dos sons, das vozes, do simples gesto - cada vez mais raro - de ouvir para ser ouvido.

***

Flor da noite
(Celso Fonseca / Ronaldo Bastos)

Dorme, tudo dorme
Sobre o mundo cai o véu
Veste o infinito
Véu da noite, cai do céu

Se outro alguém te lembrar de nós dois
Não diz pra esse alguém
O que passou e ficou pra depois
Seja o que for
Além de mim
Ninguém
Assim

Sonha, tudo sonha
O universo vai ao léu
Verso do meu sonho

Flor da noite, carrossel

15 dezembro 2011

Cantar

"Há na alegria um mecanismo aprovador que tende a ir além do objeto particular que a suscitou, para afetar indiretamente qualquer objeto e chegar a uma afirmação do caráter jubiloso da existência em geral", anota Clément Rosset em Alegria a força maior.
Toda alegria é alegria de viver. Prenhe de alegria, o indivíduo alegre só quer saber - involuntariamente - de espalhar aquilo que lhe move, lhe toma por dentro. Particular que se insinua no geral, assim como a tristeza, a alegria não tem motivo de ser, mas está.
No entanto, enquanto a alegria parece não desejar o impossível, aquilo que a realidade não é capaz de oferecer, a tristeza se debate em esperar o irreal, a incessante aprovação do outro.
Obviamente, ninguém é tão mono ou bicromático. Porém, como diz o sujeito de "Neguinho", de Caetano Veloso: "Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz", esquecendo-se que "belezas são coisas acesas por dentro" e "tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento".
"Haverá um dia em que você não haverá de ser feliz / (...) / Você vai rir sem perceber / Felicidade é só questão de ser / Se chorar chorar é vão porque os dias vão pra nunca mais", diz o sujeito de "Felicidade", canção de Marcelo Jeneci e Chico César. É mais ou menos isso.
As fronteiras que distinguem e delimitam a alegria (aqui, propositadamente confundida com a felicidade) e a tristeza são constantemente borradas na ação do indivíduo no mundo. Tanto os risos sem razão quanto o choro sem motivo aparente são emblemas de um corpo existindo.
Salvo engano, penso ser desse modo que o sujeito da canção "Cantar", de Teresa Cristina (Delicada, 2007) se coloca no mundo: sem "ter que explicar pra ninguém / A razão desta tal melodia / Encharcada de sorriso e pranto".
"Cantar é vestir-se com a voz que se tem", diz o sujeito indicando que, para além do que é cantado, há um indivíduo nu sangrando e sagrando a própria existência ao cantar: ao criar e envelhecer (solta no ar) a lembrança de uma alegria perdida.
No canto, o sujeito existe: se plasma, posto que, pela voz, ele sai para fora de si - "No canto / Vou jogando a minha vida pra você / Por isso, fecho os olhos pra não ver", diz o sujeito de "Cantar".
O timbre vocal de Teresa Cristina - tons baixos, voz descompromissada, andamento lento e cadenciado - figurativiza o sujeito que canta e se acomoda à vida: está impregnado de dor e prazer, pois ele/ela sabe que tristeza sem ressentimento é alegria.
Os versos "canto para amenizar / Grande dor que me traz / O sorriso de alguém / Se a minha escola querida / Cruzar a avenida" parecem sintetizar aquilo que aqui sugiro: cantar é equilibrar na voz a alegria e a tristeza, a lembrança e o gesto de existir no instante-já da canção. E isso só é possível porque há um indivíduo (humano) por trás de tudo: procurando no inferno o que não é inferno, como diria Calvino.
Penso a alegria de modo muito próximo a Clément Rosset, ou seja, a alegria não nega a tristeza, ao contrário, incorpora. Equilibrando-se dentro de nós, são elas que nos mantem em estado febril diante da vida, sem tempo de temer a morte. Cantar, alegrar-se é arriscar, é entregar-se ao que virá, lúcido pela lembrança dos acúmulos do tempo que não pára.
Nós brasileiros temos um movimento nato ao encontro da alegria. E somos cobrados por isso o tempo todo. E claro que há uma indústria do entretenimento tirando proveito disso. Mas ser alegre, e nisso o brasileiro, na prática (sempre pensando com o corpo todo), faz muito bem, é ter lucidez de sua posição (individual) e nem por isso deixar de cantar. Daí a nossa melancolia (melosa melodia) tropical.
Talvez o jeito de corpo do malandro seja a melhor metáfora para ilustrar isso. Ser alegre não é ser alienado e raso. Nem tão pouco, ser triste é sinônimo de ser casmurro e profundo. Para além das patologias que tais sintomas podem indiciar, é preciso atentar-se à unicidade de cada voz e sua legitimitidade de ser.
Claro, isso é um viver por um fio: ter lucidez diante do absurdo da existência, tanto pode levar à tristeza profunda, quanto a alegria romântica e boba. Além das subcategorias, talvez mais nefastas ao indivíduo, como a má interpretação do que é ser cool.
A voz de Teresa Cristina - meio Nelson Cavaquinho, meio Paulinho da Viola, meio canto falado, meio samba-canção - cantando "Cantar" é mirada no espelho da memória de alguém que vivencia, experimenta o sabor do gesto de viver. E isso dói, mas não de tristeza, no sentido negativo, mas da sensação de estar vivo, arranhando o real: uma dor gostosa, mansa, alegre.

***

Cantar
(Teresa Cristina)

Cantar
Desnudar-se diante da vida
Cantar é vestir-se com a voz que se tem
Achar o tom da alegria perdida
E não ter que explicar pra ninguém
A razão desta tal melodia
Encharcada de sorriso e pranto
No cantar a lembrança se cria
E envelhece de repente
Vai solta no ar
Por isso eu canto

Canto para amenizar
Grande dor que me traz
O sorriso de alguém
Se a minha escola querida
Cruzar a avenida
Eu canto também
No canto
Vou jogando a minha vida pra você
Por isso, fecho os olhos pra não ver

08 dezembro 2011

Autotune autoerótico

A voz é a certeza de que uma pessoa de carne e osso a emite e existe. É uma assinatura. "Fui apresentado a Gal porque ela cantava bem. Não fui conhecer uma pessoa, e sim um canto", disse Caetano Veloso em entrevista ao jornal O Globo (29/11/2011).
Para além daquilo que viria a ser a sua presença redefinidora do corpo feminino em cena, Gal Costa é uma voz - do cóccix à boca - singular e única. Viva e corpórea, a voz nos distrai da obsessiva vigilância platônica, alertando-nos para a unicidade de cada indivíduo.
Como anota Adriana Cavarero, no livro Vozes plurais: "Uma voz significa isso: existe uma pessoa viva, garganta, tórax, sentimentos, que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras vozes".
Salvo engano, a canção "Autotune autoerótico", de Caetano Veloso, é síntese (e antítese) do disco Recanto (2011). O verso que abre a canção - "Roço a minha voz no meu cabelo" - dá visualidade sonora à capa do disco: o rosto de Gal Costa em close-up e sua voz (assim, meio de lado) "fotografada" no instante exato em que roça o cabelo da cantora. Notas (vocais) e fios (de cabelo) elétricos a serviço do cantar.
Aliás, com Recanto, Gal Costa se recoloca no posto da cantora que corre riscos, experimenta, cria - faz da técnica vocal ruminada pela experiência um aparelho à disposição do cantar. Gal mostra que não basta incorporar ruídos artificiais à canção para fazê-la ter ar contemporâneo. Para andar, o canto necessita das vivências e das lembranças do dono da voz. Como os arranhados (reminiscências de um tempo vivido) - ajustados eletronicamente - da agulha no vinil acompanhando a canção "Recanto escuro", por exemplo.
E é aqui que Gal Costa se redimensiona como intérprete cuja voz tépida (tons mais baixos dos que emitidos nos anos de 1970 e 1980) agora não luta mais (não precisa mais lutar, pois já sabemos que seu nome é Gal) eroticamente contra a estridência de uma guitarra elétrica, mas com a frieza de um equipamento eletrônico que ameaça distorcer (e distorce) sua voz.
São os versos "Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar / pelos caminhos que levam à grande beleza" que melhor representam a tese sustentada pelo disco. E estimulam a análise do processo de descarte da voz perpetrado tanto pela filosofia - de Platão a Derrida -, quanto, supostamente, pelo autotune.
Processador que corrige as performances vocais e instrumentais, o autotune tem servido para disfarçar erros e limitações. No entanto, como "belezas são coisas acesas por dentro" (Mautner), o autotune, de viés, revela que só o cantor - e seus botões de carne e osso - é capaz de pensar que nada "dá socorro no caminho inevitável para a morte" (Gil).
Obviamente, a intenção do sujeito de "Autotune autoerótico" não é execrar o equipamento. Pelo contrário, dizendo quem é o dono de quem, o sujeito faz da máquina um cúmplice na tentativa de significar (dar sentido a) o absurdo da vida. Sem a voz o autotune não se basta para satisfazer a urgência humana de belezas. Por sua vez, sem o autotune a voz (humana, orgânica) não chegaria aos resultados estéticos esperados.
Em "Autotune autoerótico" temos o perfeito equilíbrio entre forma e conteúdo. Tudo aquilo que é cantado por Gal Costa é mostrado sonoramente pela sua voz distorcida, através do uso do equipamento eletrônico.
É deste modo que um verso como "desço a nota até o sol do plexo" pode ser percebido em sua materialidade pelo ouvinte, já que a voz de Gal desce até o ponto mais grave das notas, localizando-se na altura da região do plexo solar, onde está o diafragma: equipamento (autotune) orgânico de sustentação e motor dos ajustes vocais.
O efeito autotune e o efeito orgânico se misturam fundando o efeito especial do ato de cantar. O cantar é maior do seus instrumentos, fura bloqueios e "coisas sagradas permanecem / nem o Demo as pode abalar". Manipulada, ou não, é a voz quem indicia a existência de um indivíduo-cantor.
Borrando fronteiras, ficção e realidade se misturam posto que, como é sabido, a jovem Maria da Graça exercitava a voz nas panelas da mãe, dona Mariah. Autoeroticamente (alter inclusive), o sujeito da canção diz: "Americana global, minha voz na panela lá / Uma lembrança secreta de plena certeza". Só lembra quem pensa. E vice-versa. O sujeito é Gal, é eu, sou eu, é nós.
É na voz vinda de um recanto (eternos relance e renasce) escuro que se alimenta o gesto vocal de Gal Costa: o humano acima (ou junto) dos artificialismos. Ou seja, a voz orgânica (quente) e a voz fria (eletrônica) levam à mesma plural Gal Costa - "instintos e sentidos" - frente ao infindo.
Não sabemos onde termina a voz do sujeito da canção e onde começa a voz (biográfica) de Gal: "O menino é eu, o menino sou eu". Elas se misturam, se autoerotizam e, respondendo à pergunta feita pela voz autotunizada da cantora Cher - "Do you believe in life after love?" -, Gal Costa, com voz também modificada e acompanhada por uma base eletrônica grave e áspera, parece querer dizer que sim, que "as coisas findas, / muito mais que lindas, / essas ficarão" (Drummond), sempre que houver alguém cantando, trazendo a vida na voz e não permitindo que o amor (à vida) se perca.
A voz - "esta voz que o cantar me deu é uma festa paz em mim" - de Gal Costa joga/luta eroticamente - atrás, na frente, em cima, em baixo, entre vozes - com as intervenções do autotune a fim de afirmar que "a lembrança secreta de plena beleza" só é possível porque há Gal Costa sustentando tudo, na voz. É nela que tudo dói e canta: e é gozo vital.

***

Autotune autoerótico
(Caetano Veloso)

Roço a minha voz no meu cabelo
Desço a nota até o sol do plexo
Ai, meu amor, me dá, que calor, me beija
Ah, por favor, não vá, por favor, me deixa

Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar
Pelos caminhos que levam à grande beleza
Americana global, minha voz na panela lá
Uma lembrança secreta de plena certeza

01 dezembro 2011

Fotografia

"Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa", anota o eu-lírico do poema "Motivo", de Cecília Meireles. Assim, cantar é a tentativa de capturar o instante infotografável; é dá-lo à existência.
Mais do que viver e do que sonhar, cantar é ter o coração daquilo que se canta; é sentir - e fazer vibrar - o que não tem governo; é localizar-se no pré-pós sentido; é deixar a vida brilhar. Cantar é roçar o real e arranhar o sonho, inseparavelmente.
Cantar é alimentar o relicário dos significantes daquilo que somos, podemos e/ou queremos ser. E cada verso, no gesto vocal, é flashe sobre a pele luminosa de nossa humanidade se insinuando no sentido.
Quando Leo Tomassini dá voz ao sujeito de "Fotografia", de Tom Jobim (Amor e Cordas, 2003), com sua voz tranquila e passional na medida exata, ele dispara as lembranças amorosas de um encontro (de um desejo) que se sustenta na própria canção.
Metacanção, canção que fala das canções que contam sobre aquele beijo de todo apaixonado, "Fotografia", sob o arranjo de Felipe Trotta, soa nostálgica e alegre. Afinal a canção existe - entre violões, bandolim e cavaquinho - indiciando que há amor e desejo alimentando a voz do cantor.
Amor e cordas, passado e canção se misturam na voz compromissada de Tomassini em cantar o instante-já tranquilo e terno de um sujeito que lembra e vive, sente e rir: existe porque tem e terá o que recordar: a intimidade intransferível entre ele e o outro.
O recado-canção sai de um (eu) ao outro (você) no instante em que o sujeito-cantor se vê no lugar exato daquele beijo tatuado na tela de sua memória. Estar ali em companhia do outro - na presença-ausência do outro - dispara o flashe fotográfico, move as cordas vocais, imprime a canção, a fotografia sonora.
"Há sempre há sempre uma canção para contar aquela velha história de um desejo que todas as canções têm pra contar", diz o sujeito. A vida "real" - particular, finita - se completa no canto, na eternização de instantes mágicos como esses em que o acontecimento se faz canção.
O sujeito de "Fotografia" faz da canção um beijo destinado ao outro (você) que com ele viveu/vive o instante agora relembrado e cantado. Sujeito que ganha figura na capa do disco de Leo Tomassini com o close nas mãos que seguram sobre o peito do cantor o que se sugere ser um coração feito de um emaranhado de cordas de aço.
Você sabe o que é ter um amor? O sujeito de "Fotografia" - luzes brandas e cores invisíveis - sabe. "E a canção é tudo - tem sangue eterno a asa ritmada".

***

Fotografia
(Tom Jobim)

Eu, você, nós dois
Aqui neste terraço à beira-mar
O sol já vai caindo e o seu olhar
Parece acompanhar a cor do mar
Você tem que ir embora
A tarde cai
Em cores se desfaz,
Escureceu
O sol caiu no mar
E aquela luz
Lá em baixo se acendeu

Você e eu

Eu, você, nós dois
Sozinhos neste bar à meia-luz
E uma grande lua saiu do mar
Parece que este bar já vai fechar
E há sempre uma canção
Para contar
Aquela velha história
De um desejo
Que todas as canções
Têm pra contar
E veio aquele beijo
Aquele beijo
Aquele beijo

24 novembro 2011

Mãe

Há algo de materno no ato de cantar e ser cantado. A canção quer suprir, pela fruição estética, a falta que nos move: o suprimento sirênico do aconchego intra-uterino - o tempo/espaço que tudo cede, de graça.
Fora dali tudo é busca, troca, empenho individual cansativo e, muitas vezes, fracassado. Mas não nos enganemos: a mãe, ao cantar o filho, também se canta, vive - posiciona-se em um mundo onde a imagem quer ser tudo, mas não ultrapassa a epiderme.
É desse modo que a trilha sonora de cada existência - pessoal e incopiável, por mais que o mercado aja com a massificação: e é para isso que têm agido os melhoramentos técnicos de gravação e reprodução da voz - diz aquilo que somos, ou queremos ser.
Quanto à unicidade de cada voz, diz o sujeito-cantor da canção "Mãe", de Caetano Veloso: "Eu canto, grito, corro, rio e nunca chego a ti".
Além de apontar o empenho sem sentido restaurador, posto que a phoné antecede o semântico, o sujeito canta o desejo de volta, de recolhimento à escuridão abundante do ventre (estrela azulada) materno. "Minha mãe é minha voz", poderia dizer o sujeito.
A impossibilidade de restituição - a incompletude ontológica - parece ser o motor do humano, faz a vida valer a pena pois sublinha a dor e a alegria do indivíduo único e, portanto, solitário. A canção é suplemento, o cantor - ao dizer aquilo que precisamos ouvir - é amigo intimo, parceiro, mãe.
Guardada no disco A Dama indigna (2011), na voz que flui entre o cool e o excesso de Cida Moreira, "Mãe" ganha contornos luminosos. Assumindo a persona do sujeito que descobre em nada valer ser filho da santa, e melhor ser filho da outra, Cida constrói o sujeito que mesmo indigno, e exatamente por ser indigno - afinal todos o somos, pois nunca alcançamos a meta: a língua materna -, canta e quer ser feliz.
Voz cambiante, vinda de um trabalho preciso e lúcido com a palheta vocal, Cida realça a sofisticação da relação cantor-ouvinte (mãe-filho). Ao mesmo tempo em que dignifica toda a possibilidade relacional que vai do sujeito à mãe idealizada.
Com uma voz que se movimenta brusca, passional, rude, cruamente na tessitura melódica, Cida remelexe os signos dionisíacos da díade (fusão narcísica) mãe-filho. “Quem chora por amor é um imbecil / Quem vive de ilusão é muito mais”, dirá a cantora noutra faixa do mesmo disco.
A interpretação desmaculada - entre afagos e sopapos - da canção amplia os significantes de uma letra toda feita em dísticos (versos emparelhados, a dois) para sagrar o objeto-título.
O desejo de retorno ao uno é atravessado por uma nesga de raiva incontida contra aquela que colocou o sujeito-cantor no mundo. Bem diferente, por exemplo, da delicada versão realizada pelo grupo O tao do trio que, no disco Uns caetanos, investe em uma canção de ninar - resposta feliz aos trechos vindos dela: da voz materna.
Toda canção - significada individualmente - é colo de mãe. E seja como for, "rei sem fim", "homem tão sozinho" e "bicho triste", a mãe brilha naquilo que o sujeito é. As referências ao universo sonoro - palavras, guitarras, vento, cidades, marés, cigarras - intensificam o anseio cancional, a vontade de reparo no desamparo existencial.
Os elementos dispersos desde a separação, são recolhidos pela canção, pela voz do sujeito, de Cida Moreira, a fim de equalizar e construir o colo estético-sonoro, inalcançável na "vida real", desejado por todo indivíduo. Ao cantar a mãe ele engendra um gozo do prazer já vivido. Chora, geme e rir de dor e deleite.

***

Mãe
(Caetano Veloso)

Palavras, calas, nada fiz
Estou tão infeliz

Falasses, desses, visses não
Imensa solidão

Eu sou um rei que não tem fim
E brilhas dentro aqui

Guitarras, salas, vento, chão
Que dor no coração

Cidades, mares, povo, rio
Ninguém me tem amor

Cigarra, camas, colos, ninhos
Um pouco de calor

Eu sou um homem tão sozinho
Mas brilhas no que sou

E o meu caminho e o teu caminho
É um nem vais nem vou

Meninos, ondas, becos, mãe
E só porque não estais

És para mim que nada mais
Na boca das manhãs

Sou triste, quase um bicho triste
E brilhas mesmo assim

Eu canto, grito, corro, rio
e nunca chego a ti

17 novembro 2011

Dos prazeres, das canções

Em 1933, Oswald de Andrade, em um de seus lúcidos lances de vista sobre a cultura brasileira, chamava à atenção "pelo direito de ser traduzido, reproduzido e deformado em todas as línguas". Ontologicamente híbrida, a cultura (popular e de massa) brasileira tem no samba uma de suas proposições de investigação identitária.
Transcriando-se, sendo deformado, alterado, reproduzido, transtraduzido - tambores do candomblé e Jesus de Nazaré - culturalmente, o samba parece sintetizar as muitas vozes (plurais) que lhe constituem. "Liquidificador de orixás", como diria o sujeito da canção de Davi Moraes, "a elétrica magia da nação / (...) / lá na praça o poeta estende a mão / e a voz do povo canta".
Bem cultural, simbólico e patrimonial, o samba tem aceitado todos os argumentos (mutantes) geradores de mudança, ao longo do tempo. E resistido. Utilizando a antropofagia (que nos salva), ele muda para continuar. Trai para ser e estar tradição.
Não há um verdadeiro e único (puro) samba. O que, na prática, seria um samba-de-raiz? O que há são apropriações de um bem simbólico para fins de mercado. Toda tentativa de preservação que não tenha como matriz a noção de que a traição à tradição faz parte do processo de manutenção desta, resulta esterilizante. Na maioria das vezes, soa mais falso do que a falsificação que certos puristas tentam combater.
"Ninguém me salva / ninguém me engana / Eu sou alegre / Eu sou contente / Eu sou cigana / Eu sou terrível / Eu sou o samba", diz a canção "A voz do morto", de Caetano Veloso, na voz de Aracy de Almeida.
É neste contexto de mirada estética que surge a canção "Dos prazeres, das canções", de Péricles Cavalcanti. Cancionista responsável por momentos importantes em nossas canção e poesia, Péricles cria um sujeito que dança ao som dos inventores e mestres do passado-presente, apropriando-se de suas vozes como um médium antropófago, para cantar aquilo que é: canção, prazer estético.
Além e aquém dos pseudos desejos de pureza, o sujeito dessa canção é "aquele que o tempo não mudou, embora outro". O sujeito se insere na linha evolutiva da canção exatamente por não se acomodar, por imputar transformações - criar novos modos de cantar e ser feliz.
As notas de melancolia que a voz de Péricles Cavalcanti - timbre baixo, sereno - entoam figurativizam o ataque à adaptação esterilizante, tradicional e moderno que o sujeito da canção é. Ou seja, a voz do cantor teatraliza com sua gestualidade vocal a dança mítica que a canção sugere ao ouvinte.
Alheio aos debates sobre manutenção ou mudança, o samba aqui atravessa a avenida feliz: deglutindo e devolvendo ao mundo as vozes que o mundo lhe oferece. "A minha estirpe sempre esteve ao seu dispor. Me dê ouvidos que eu lhe digo quem eu sou", diz o sujeito, pela voz tranquila (quase canto-falado) de Péricles Cavalcanti.
O sujeito é um conjunto. Uma legião. Deus e o diabo na terra tropical. Do sol. Palavra e música, ele se materializa na voz. Ele antecede, como qualquer canção, à divisão nítida entre seus significantes, suas partes que, agora, misturadas, hibridizadas, já não tem mais sentido fora do todo.
Indivisível e traidor, ele - o samba, a voz do sujeito e a voz do cantor - sonha e arde de amor. Feitiço (in)decente que solta e prende a gente. Liberta-nos da mestiçagem facilmente adaptada ao conservadorismo. "Eu sou aquele", repete o sujeito. Aqui, ele canta o dali, o de ontem, o de hoje, o de sempre.
O sujeito toma seu lugar na linha que tem antecessores da estirpe de "Herivelto, Caymmi, Sinhô, Valente, Wilson Batista, Noel, Heitor dos Prazeres". A serviço dos prazeres, das canções os astros dançam e reluz - fazem coro.
Guardada no disco, sintomaticamente, chamado de Canções (1991), "Dos prazeres, das canções" faz da voz de seu cantor - suas modulações, gestos, performance - a chave de sua audição, por condensar a reflexão sobre si - sobre o cantar, sobre ser samba, sobre ser canção.
O eterno, no sujeito, é canção e identidade. Em primeira pessoa, a letra não deixa dúvida quanto à indistinguível concretização da mistura daquilo que é dito com quem diz. Sujeito-canção - receptor e emissor: canção. "Eu sou doutor nos sentimentos de alegria e de dor, dô, dô o que você quiser", diz este, que é aquele.

***

Dos prazeres, das canções
(Péricles Cavalcanti)

Eu sou aquele
Que o tempo não mudou
Embora outro, eu sou o mesmo
Eu sou um mero sucessor
A minha estirpe
Sempre esteve ao seu dispor
Me dê ouvidos que eu lhe digo quem eu sou

Sou Herivelto, sou Caymmi
Eu sou Sinhô
Eu sou Valente, eu sou Batista
Eu sou Noel, eu sou Heitor
Dos prazeres, das canções
Eu sou doutor
Nos sentimentos de alegria e
de dor, dô, dô o que você quiser

Tô, tô, tô
Pro que der e vier

09 novembro 2011

A voz do coração

Em A pele que habito, filme de Pedro Almodóvar, a jovem Norma (Ana Mena), brincando distraidamente no jardim, cantando os versos de "Pelo amor de amar", de José Toledo e Jean Manzon, desperta a mãe marcada por um incêndio que lhe desfigurou o corpo.
Em uma torção mítica feliz, a filha é a sereia da mãe. A voz de Norma - suas inflexões infantis, seu esforço para cantar em português uma canção de ninar desnaturada - dá o sopro de vida que Gal (a mãe) necessita. "O coração do mundo canta no meu coração / Meus pés seguem sozinhos a dançar / Eu não conheço em mim a grande dor da solidão / Se em tudo eu encontro o dom de amar", canta.
E ao mesmo tempo, é essa a voz que também direciona a personagem à luz, a ver-se refletida em sua aparência aterradora, ao fim trágico e irrefutável. Desse modo, a voz do coração da criança é o veneno-remédio de Gal. "Só a morte apazigua esse nada-mais-tem-sentido que a decrepitude nos sussurra a todo instante. Canto de sereia às avessas convencendo Ulisses de que o mar secou", anotaria o narrador do livro Minha mãe se matou sem dizer adeus, de Evandro Affonso Ferreira.
As consequências do gesto de furtar da mãe o papel de sereia definirá a existência da filha. E a trama de Almodóvar. Mais tarde, a audição da mesma canção, agora em espanhol e na voz de Buika (uma cantora profissional), arrastará a filha ao destino.
"Pelo amor de amar / Quero ser a luz que sorrir na flor / Pelo dom de amar / Quero ser a flor que se deu de amor", encerra a canção gravada por Ellen de Lima em 1960 para o filme Os bandeirantes, de Marcel Camus.
Tenho dito, e repito, que somos alguma coisa feita para ser cantada. E cantante. Sustentamo-nos na voz. Mas não é qualquer canção. E, principalmente, não é qualquer voz. A voz que (me) canta é a voz que governa (meus) mundos.
Em geral, pela nossa trajetória histórica e genética, pensamo-nos (nós: latino-americanos) com o corpo todo (homo ludens pulsando), e a voz tem presença decisiva nesse processo, como uma resposta intuitiva ao raciocínio colonizador, posto que a voz convida ao movimento: à dança.
"Nunca fomos catequizados, fizemos foi carnaval", diria Oswald de Andrade. A palavra escrita nunca foi suficiente para nós. O empenho da palavra falada sempre teve mais valor do que o da palavra escrita. Muito embora, em um gesto típico de cópia mal sucedida e subalterna, tenhamos burocratizado em excesso nossos pensamentos e palavras, atos e omissões.
Mais do que qualquer outros povos, estamos melhor preparados, porque fundamo-nos sobre os atos de criar e conectar-se, para viver o mundo contemporâneo. O jeitinho é nosso veneno-remédio, nossa sereia a nos arrastar à vida (empurrar para frente) e à morte.
Digo tudo isso para destacar a beleza da voz de Jussara Silveira cantando "A voz do coração", de Celso Fonseca e Ronaldo Bastos, no disco Ame ou se mande (2011). Há nas inflexões vocais de Jussara - nas nuances sutis nas alturas melódicas - um descompromisso (natural e espontâneo) com aquilo que é dito. Voz que luta eroticamente com uma melodia em soluços, compassada.
Já tendo sido gravada por Celso Fonseca, com Jussara Silveira "A voz do coração" ganha contornos sirênicos sedutores. Jussara e sua voz nos arrastam para um campo onde somos amor da cabeça aos pés: desperta em nós a nostalgia da pura interioridade. Semelhante à criança que desperta a mãe.
"Quem poderá em vão calar / a voz do coração?". A pergunta inicial do sujeito parece querer refletir a nossa dúvida humana. Entre a razão (o logos desvocalizado) e a emoção (a vocalização do saber) o coração canta como contrapartida estética ao abandono - "Se o amor quiser partir num dia de manhã sem avisar".
É esta voz que dita o rumo a ser seguido pelo sujeito cantor da canção. Fazer do limão uma limonada, da solidão um amor em paz, equilibrar dor e alegria no estético - na criação - são ensinamentos vindos do coração. A voz de alguém cantando anuncia que há um ser único e de carne e osso vibrando-lhe no ar.
Ao contrário da outra "canção de fossa", porque ao invés de pensar em causas e efeitos, criou, transcriou tudo em canto, o sujeito decreta: "Meu mundo não caiu preciso lhe falar / eu gosto de voce demais // Preciso lhe dizer de todo o coração / a falta que você me faz". Precisa e diz.
Sem o outro que lhe abandonou, o sujeito não cantaria. É nisso que ele foca, cantando para mandar a tristeza embora, ou melhor, para hibridizá-la à alegria e uni-las no canto necessário à vida, em um exercício de criatividade desprendido da carga pesada que é viver. Aqui, a voz poética (da memória, do coração, em certa medida) é o estabilizador - sem ela o ser humano não suportaria estar vivo.
Dando vida a este sujeito cantante, Jussara Silveira, tal e qual a personagem Norma de Pedro Almodóvar, coloca-nos diante do espelho: é a sereia que promove o movimento, convida-nos à criação. E ao final, como diria o sujeito de "Ilusão à toa", de Johnny Alf: "Meus olhos sentem / Minhas mãos transpiram / É um amor que eu guardo há muito / Dentro em mim / E é a voz do coração que canta assim / Assim". E "quem poderá em vão calar seu coração?".

***

A voz do coração
(Celso Fonseca / Ronaldo Bastos)

Quem poderá em vão calar
a voz do coração?
Se o amor quiser partir num dia de manhã
sem avisar

A voz me dita o que fazer
tingir de outra cor a cor da solidão
Fazer dessa manhã amor em paz

Meu mundo não caiu preciso lhe falar
eu gosto de voce demais

Preciso lhe dizer de todo o coração
a falta que voce me faz

Quem poderá em vão calar meu coração?

03 novembro 2011

Aquela velha canção

"Este fio é a única coisa que me liga ainda à nossa vida. (...) Porque tu me falas. (...) Neste momento, respiro porque tu me falas", diz a personagem criada por Jean Cocteau para o monólogo (ao telefone) A voz humana.
Mesmo mediada, gravada, reproduzida a voz de alguém é inimitável. E a voz de quem se ama é o sopro na alma do amador. Ouvir-se pela voz de alguém restitui-nos à vida. A personagem de Cocteau, abandonada pelo amado que se casará com outra, só existe porque há alguém - ligado à ela pelo fio telefônico - que lhe permite viver, falar, cantar.
Construída num momento em que se discutiam as novidades tecnológicas nas transmissão e reprodução da voz humana, atravessada pelas falhas técnicas dos aparelhos, o que causava estranhamento entre a voz e seu dono, a peça de Cocteau fala-nos da imaterialidade da pessoa. Ou melhor, da presença da pessoa na materialidade da voz.
A voz carrega toda a mensagem da alma humana. Imperfeitas ou não, as máquinas ajudam a presentificar alguém distante. Ao dar play, trazemos o cantor para o nosso lado. A voz do cantor nos liga à vida. "Quando eu te ligar cantando aquela velha canção / Não diga que estou enganado", diz o sujeito da popular, direta e brejeira "Aquela velha canção".
Se no caso da peça de Cocteau temos em cena "apenas" aquele que ouve e engendra falas passionais apartir da audição "inaudível" ao expectador, na canção "Aquela velha canção", de Carlinhos Brown e Marisa Monte, temos em cena a voz do sujeito que liga o (e para o) outro, a fim de evidenciar o amor.
Somos seres sonoros - ilusões sonoras, verdades fabricadas. E as trilhas que emolduram nossa existência tem importância decisiva naquilo que somos. Certo dessa certeza, o sujeito canta: "Quando eu te ligar cantando aquela canção / Não diga que não sente nada". É no canto do amor que as personagens vivem: são e estão no mundo.
Cantar aquela velha (sempre nova) canção é fazer o amor amar, é disparar a memória afetiva e tudo aquilo que fomos e/ou poderíamos ter sido. E não à toa o sujeito diz: "Quando eu te ligar cantando aquela canção / Pra te desnortear, te ferir com carinho / É pra fazer doer no seu ouvido a nota melhor do nosso amor".
E aqui entra a importância da interpretação de Marisa Monte. Trabalhando com acelerações e desacelerações no andamento entoativo, ao cantar a expressão "aquela canção" oitava acima do restante do canto, a cantora desperta a dor ("te ferir com carinho") no ouvido afetivo do destinatário. Um lance de forma e conteúdo bem resolvido.
Além disso, as frases longas, que parecem não querer caber na linha melódica, indiciam a urgência do que é dito (cantado) pelo sujeito. Atuando nestes momentos a contenção dos alongamentos vocálicos na voz de Marisa Monte. Ela, que tem no excesso de presença da própria voz - seja na palavra cantada, seja nos vocalizes - uma assinatura cancional, consegue o registro ideal para desenhar o sujeito dessa canção.
Diferente da situação criada por Cocteau, o sujeito da canção finge não estar numa situação conversacional. Ele lança o aviso/convite para que "quando ligar" o ouvinte tenha a atenção necessária para escutir o que quer saber de verdade: o amor, a voz do outro que lhe dá vida - "Alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, amor". Alôs, luas e amor também uma oitava acima do comum da altura da canção, figurativizando "a nota melhor do nosso amor".
E eis que surge mais um aspecto metacancional dessa canção: consciente de sua função de cantor, o sujeito diz o que irá fazer, fazendo. Anuncia o canto, cantando. Ao ritmo de sons interioranos, caipiras, próximo às melodias que ouvimos à beira da estrada, na boleia de um caminho. "A saudade então aperta o peito / Ligo o rádio e dou um jeito / De espantar a solidão", diria o sujeito da canção "Caminhoneiro", de Roberto Carlos, Erasmo Carlos e John Hartford, um possível destinatário da mensagem do sujeito de "Aquela velha canção".
Guardado no disco O que você quer saber de verdade (2011), o sujeito de "Aquela velha canção" se desnuda, pois, assim como o ouvinte de sua mensagem, nada, nada, nada está resolvido. A não ser o tudo, tudo, tudo de ser cantor. Apesar da mágoa, o sujeito permanece sendo o cantor do outro, posto que assim também se canta e encontra um lugar no mundo. Ele canta a interdependência amorosa, via telefone. Ele sabe que, através do telefone móvel, ele pode estar o tempo todo, mesmo com o passar do tempo, ao lado do outro.
Cantor, emissor da palavra cantada, está no querer do sujeito mandar ou não o outro para o inferno - silenciar."O inferno nem é tão longe", diz o sujeito da canção da Nação Zumbi. Já para o sujeito de "Aquela velha canção", enquanto houver amor, canção, o inferno é longe. Afinal, no canto recíproco as personagens se mantem no paraíso.
O sujeito é do tempo em que a gente se telefonava. Tal e qual o amado da personagem de Cocteau, apesar de ter esquecido certas dores, ele está irremediavelmente ligado ao ouvinte, pela lei irrevogável do canto. Um (cantor) vive no canto do outro (ouvinte). E vice-versa. Inferno e céu de todo instante.
Frio, mas motor de calor (presença), o telefone é a coisa que mantem as personagens vivas. Mediador do afeto, ele facilita o contato, reabre os sentimentos, notifica o (nosso) amor. Jogando com o que pode e o que não pode ser, já que quem fala está (palavra cantada) e não está (corpo) aqui/agora, os instrumentos de reprodução estão à disposição de nossas mentiras sinceras (real/ficção), da vida, vida que não menos nossa que da canção.

***

Aquela velha canção
(Carlinho Brown / Marisa Monte)

Quando eu te ligar cantando aquela velha canção
Não diga que estou enganado, estou resolvido
Vou dar férias pro meu coração
Confesso que fiquei zangado, eu fiquei magoado,
Mas agora passou, esqueci
Não vou te mandar pro inferno porque eu não quero
E porque fica muito longe daqui

Quando eu te ligar cantando aquela canção
Pra te desnortear, te ferir com carinho
É pra fazer doer no seu ouvido a nota melhor do nosso amor

Quando eu te ligar cantando aquela canção
Não diga que não sente nada
É pra fazer doer no seu ouvido a nota melhor do nosso amor

Alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, amor

27 outubro 2011

De onde vem a canção

Ao que tudo indica, quando lemos um texto em voz alta estamos mais atentos ao conteúdo dele. Enquanto que quando cantamos o que importa é a expressão daquilo que é dito (cantado). Há uma vitalidade intrínseca que diferencia a palavra falada da palavra cantada. E essa vitalidade está manifesta na voz: é representada pelo sopro de ar que atravessa o corpo e se encorpa na garganta.
Obviamente os níveis de aproximação entre um ponto e outro são tenues e frágeis. Ou seja, pode haver, e muitas vezes há, conteúdo no canto, assim como pode haver expressão na leitura. Na leitura de um poema, por exemplo, o leitor, em geral, busca apresentar a trajetória do sujeito-lírico trabalhando a tessitura entoativa.
E assim caímos no campo das paixões. É calcado na paixão que o leitor e/ou o cantor imprimem mais ou menos vitalidade à palavra que seus pulmões lançam no ar depois de tocar (e ser tocada por) sua garganta, úvula e impregnar-se de saliva, na boca.
As canções, deste modo, são regidas pelo sensível, que, por sua vez, é a base da cognição. Pensar tais coisas exige a vocalização do logos. Exige reconhecer que nem só de escrita vive o Homem, mas também daquilo que é dito, cantado. Neste ponto, Freud poderia dizer que "o homem é dono do que cala e escravo do que fala. Quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo".
Seja como for, há um gradiente de possibilidades entre a intenção do autor e a intenção do leitor. Para nós, é impossível falar sem fazer uso da curva melódica. Enquanto que um cantor trabalha a dicção de cada coisa que canta, faz escolhas e explora intensidades - acelerações, desacelerações.
Como mensurar a importância da leitura em voz alta à cultura e à construção de conhecimento, quando o acesso ao mundo da escrita era mais restrito? E até que ponto o leitor (sua voz: escolhas entoativas) interferiu na transmissão? O quão fundamentais são as histórias lidas às crianças? Isso sem contar as decisivas canções de ninar.
Isso tudo é para dizer que na canção (na materialidade da canção) o que determina sua eficácia é o modo de dizer da voz, mais do que o que é dito (o texto). É preciso analisar significantes e significados, a textura melódica, as pausas, a respiração... a vitalidade impressa na canção para chegar a alguma significação possível. Ou seja, para saber de onde vem a canção.
Guardado no disco Chão (2011), o sujeito da canção "De onde vem a canção", de Lenine, age atravessado pela pergunta-título. Sem resposta definitiva, mas cheio de suspeitas e afetos, ele recolhe instantes - "Quando do céu despenca / quando já nasce pronta / quando o vento é quem venta / (...) / Quando se materializa / No instante que se encanta / Do nada se concretiza" - a fim de empreender sua busca. Colocar-se no meio.
Investigar de onde vem e para onde vai a canção ("Quando tudo silencia / Depois do som consumado") é investigar a condição do Humano. O sujeito sugere, já que pergunta afetado pela canção, que ela vem e vai para dentro. Afinal, é quando finda que de fato a canção começa a ser processada em nós: entra para a nossa memória sonora - definidora daquilo que somos.
Cantor, Lenine joga com a perspectiva de que a canção só é canção quando não é mais sua (do autor, leitor, cantor): "quando nasce pronta, quando se propaga, quando se irradia" é que ela é ela - faz o vento ventar, no instante que se encanta.
Por outro lado, o sujeito criado por Lenine traz à tona a intuição como fator determinante para a definição da canção como linguagem. No Brasil, pelo menos. Nem músico, nem poeta de formação escolar: cancionista - agente da intuição vitalizada, da compatibilização intuitiva entre letra e melodia.
Intuindo e cantando, o sujeito de "De onde vem a canção" questiona sua posição no mundo e averigua - trabalhando sobre uma linha melódica sem falso apogeu - os modos de proceder e ser da canção. Sem saber de onde ela vem, o sujeito a canta. Sem saber de onde veio e para onde vai, o homem vive. E canta para manter-se encantado. Afinal, como Louise Bourgeois costumava dizer: "A arte é uma garantia de sanidade".

***

De onde vem a canção
(Lenine)

De onde
De onde vem
De onde vem a canção
Quando do céu despenca
Quando já nasce pronta
Quando o vento é quem venta
De onde vem a canção

De onde
De onde vem
De onde vem a canção
Quando se materializa
No instante que se encanta
Do nada se concretiza
De onde vem a canção

Pra onde vai a canção
Quando finda a melodia
Onde a onda se propaga
Em que espectro irradia
Pr'onde ela vai
Quando tudo silencia
Depois do som consumado
Onde ela existiria

De onde
De onde vem
De onde vem a canção

20 outubro 2011

Quando eu estiver cantando

Manipuladoras e manipuladas pelos mecanismos midiáticos, as performances vocais de Cazuza "estão também ligadas à industria cultural, em uma proposta de trabalho que traz imperativos decorrentes de expectativas de um mercado em que a arte oferecerá, ao público, o espetáculo que ele deseja e/ou que se pretende que ele queira e, ao mesmo tempo, captará lucros", como anota Jussara Bittencourt de Sá no livro Cazuza no vídeo o tempo não pára.
É desta zona de conflito entre alma e corpo que, por exemplo, emerge a voz do sujeito de "Quando eu estiver cantando", de Cazuza e João Rebouças. Aqui, o sujeito promove a própria nudez, revela receios e dialoga com sua natureza de cantor.
O sujeito de "Quando eu estiver cantando" sabe que não há solidão mais profunda do que a ausência de si. E no canto, vestindo-se e despindo-se de identidades diversas, ele se perde e se salva: "Porque o meu canto redime o meu lado mau", diz. No canto ele trai a canção: canta, mesmo desafinado. E traído ele se (re)descobre, continua o mesmo: um cantor. Mantem-se vivo.
É no bastidor-de-si que o cantor tem o direito de sofrer de verdade. Diante do público, no palco, o sofrimento precisa ser calculado, espetacularizado, como bem canta o sujeito de "Bastidores", de Chico Buarque na voz dramática e correta de Cauby Peixoto. Mas o ritmo da vida é diferente do ritmo estético? A canção leva a concluir que não. E é também do centro desta pergunta que sai a voz do sujeito de "Quando eu estiver cantando".
Guardada no disco Burguesia, "Quando eu estiver cantando" ganha de Cazuza uma interpretação passional, doída: entre sutis alturas e sussussos, calma e exasperação vocais. Diferente dos apelos agônicos do sujeito-boca-seca, voz rasgada pela exposição à luz cênica, da interpretação de Cazuza, mas não menos passional, a versão de Fafá de Belém (Piano e voz, 2002) investe na vocalização do sujeito-cantor e suas agonias diante do gesto de cantar.
Em "Quando eu estiver cantando", por sua vez, o sujeito trabalha a indefinição de sua função no mundo: nem musa (portadora do relato absoluto audível apenas ao poeta), nem sereia (portadora do relato verídico audível a qualquer marinheiro), o sujeito se deixa ver em sua humanidade (portadora da voz desafinada). Ele é a voz da voz da musa, da sereia, de si, de algo que se revela entre o palco e o camarim, onde ele se confessa a Deus.
Num registro passional pós-bossa nova a voz de Cazuza dispara: "eu sou assim / canto pra me mostrar / de besta". Ele sabe que seu gesto de autorevelação já nasce fadado ao fracasso. Entre a "gente que recebe Deus quando canta" e a que "canta procurando Deus", o sujeito da canção canta pra se mostrar, de besta: pelo sabor e dor do gesto - para manter-se vivo.
Não se aproximar, ficar em silêncio e não cantar junto são atitudes exigidas pelo sujeito àqueles que lhe ouvem. Afinal, como diria o sujeito de "Sangrando", de Gonzaguinha: "Quando eu soltar a minha voz / Por favor entenda / Que palavra por palavra / Eis aqui uma pessoa se entregando". As interferências do outro maculariam tamanho êxtase e crescimento. Ao mesmo tempo em que ele precisa do ouvido do outro para ser e estar no mundo.
"O ouvinte 'faz parte' da performance. O papel que ele ocupa, na sua constituição, é tão importante quanto o do intérprete. (...) A componente fundamental da 'recepção' é a ação do ouvinte, recriando, de acordo com seu próprio uso e suas próprias configurações interiores, o universo significante que lhe é transmitido", anota Paul Zumthor, no livro Introdução à poesia oral.
"Porque eu só canto só", diz o sujeito cancional criado por Cazuza e João Rebouças. De fato, manter a tensão entre a necessidade de cantar (ser cantor de si) e a consciência de ter voz desafinada (traição à canção) é condição singular e intransferível. Cabe ao ouvinte cumprir sua função: ouvir o sangramento.
Citando novamente "Sangrando", podemos recuperar os versos que dizem: "Quando eu soltar a minha voz / Por favor, entenda / É apenas o meu jeito de viver / O que é amar". Completando tal pensamento, diria o sujeito de "Quando eu estiver cantando": "Porque o meu canto é o que me mantém vivo (e) o meu canto é pra quem me ama".
Ao cantar desafinada, e anotar isso no próprio canto, a voz de Cazuza - sem os alongamentos vocálicos típicos de uma canção passional - reitera a potência transgressora da alma a fim de manter-se viva. Enquanto que a voz de Fafá de Belém foca no gesto mesmo de cantar, deixando se envolver por excessos de uma extensão vocal correta e que imprimem novos contornos ao sujeito da canção.
A luta entre alma (imoral: transgressora, traidora) e corpo (moral: condicionado, tradicional) é compreendida por Fafá de Belém que, acompanhada pelo arranjo instrumental de João Rebouças ("sem os instrumentistas canário não canta", diz Fafá antes de começar a cantar), não tenta recuperar a interpretação de Cazuza.
Dito de outro modo, em Cazuza, o sujeito é amor do cóccix até o pescoço, enquanto que em Fafá de Belém (ouvinte de Cazuza) o sujeito é "amor da cabeça aos pés". E ambos se completam.

***

Quando eu estiver cantando
(Cazuza / João Rebouças)

Tem gente que recebe Deus quando canta
Tem gente que canta procurando Deus
Eu sou assim com a minha voz desafinada
Peço a Deus que me perdoe no camarim

Eu sou assim
Canto pra me mostrar
De besta
Ah, de besta

Quando eu estiver cantando
Não se aproxime
Quando eu estiver cantando
Fique em silêncio
Quando eu estiver cantando
Não cante comigo

Porque eu só canto só
E o meu canto é a minha solidão
É a minha salvação

Porque o meu canto redime o meu lado mau
Porque o meu canto é pra quem me ama
Me ama, me ama

Quando eu estiver cantando
Não se aproxime
Quando eu estiver cantando
Fique em silêncio
Quando eu estiver cantando
Não cante comigo

Quando eu estiver cantando
Fique em silêncio

Porque o meu canto é a minha solidão
É a minha salvação
Porque o meu canto é o que me mantém vivo
E o que me mantém vivo

13 outubro 2011

Cigarra

"As cigarras são guitarras trágicas. plugam-se/se/se/se nas árvores em dós sustenidos. kipling recitam a plenos pulmões. gargarejam vidros moídos. o cristal dos verões", diz a poesia "As cigarras", de Sergio de Castro Pinto (Zoo imaginário).
A mitologia está cheia de seres vocais. Dentre eles, e para aprofundar as questões discutidas aqui, a cigarra e a formiga de Jean La Fontaine se destacam. A fábula é bastante conhecida. Resumidamente, enquanto a formiga passa o verão trabalhando e preparando-se para o tempo de estio gelado do inverno, a cigarra gargareja a plenos pulmões (um canto que é interpretado pela racional formiga como zombaria) e aproveita a luz e o calor do sol.
O fato é que vira-e-mexe as fabulosas personagens reaparecem, seja em peças artísticas, seja como mote filosófico, para nos lembrar certa dicotomia existencial: enquanto uma é "amor da cabeça aos pés", a outra é pura razão. Consequentemente, esta é melhor aceita, em um mundo onde o logos foi emudecido, do que aquela.
No poema de Alexandre O'Neill, por exemplo, diante da "minuciosa formiga", a cigarra canta: "Assim devera eu ser / e não esta cigarra / que se põe a cantar / e me deita a perder". Importa lembrar que, musicado por Alain Oulman e gravado por Amália Rodrigues (1969), o poema de O"Neill foi gravado por Adriana Partintim - heterônimo de Adriana Calcanhotto, em 2004: "Formiga bossa nova".
Há ainda que se citar "Esconjuro", canção de Guinga e Aldir Blanc, cujas primeiras estrofes dizem: "A zonza da cigarra no oco do cajueiro, erê / Bota o bemol na clave do verão / Quem diz uma palavra com sentido verdadeiro, erê / Que traga um som paisagem pra canção // Falei alarido palavra de vidro / Quebrada na voz / Palavra raiada mais estilhaçada / Que o caso entre nós".
A lógica dominante - o logos desvocalizado e emudecido a serviço do gesto capital de expulsar o cantor da República platônica - leva-nos a concluir que, caso trabalhasse, a cigarra não morreria. Caso não cantasse sua própria tragédia, ela (muda e obediente) viveria mais e feliz, porque segura, como a formiga. Tal ideologia, em um mundo plenamente mapeado, vigiado, assegurado parece fazer sentido. Mas a vida será mesmo assim: tão preto e branco?
Daí a importância desse poema de Sergio de Castro Pinto: focando na cigarra, apagando a sua antagonista, o poema opera a valorização da vocalidade - da percepção da vida pelos pulmões, para além do cérebro. Dito de outro modo: o poema "As cigarras" sugere uma (re)vocalização do logos.
Daí também a importância, dentro de uma economia estética das vozes, a canção "Cigarra", de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. Aqui se celebra a amizade entre o cantor e o trabalhador: "Porque a formiga é / A melhor amiga da cigarra / Raízes da mesma fábula", diz o sujeito.
Os versos da canção jogam com uma delicada permuta de vozes - ora tem-se a impressão de que quem fala é a formiga, ora é a cigarra - a fim de figurativizar a tal amizade. Amigas e não-antagonistas das mesmas luta e alegria que é viver. Afinal, o que seria da formiga trabalhadora sem seu duplo: a cigarra que lhe canta a vida: "enche de som o ar"? "Porque ainda é inverno / Em nosso coração /Essa canção é para cantar", diz a formiga revelando a importância do outro e tecendo uma metacanção.
Gravada algumas vezes pela cantora Simone, a canção ganha tons novos quando gravada por Milton Nascimento (a formiga: aquele que fez a canção) e Simone (a cigarra: aquela que canta - e também faz - a canção), no disco Simone ao vivo (2005).
Porque ela pediu a ele uma canção para cantar (a primeira gravação é de 1978), a formiga fez uma canção que servisse à natureza da cigarra: arrebentar-se de tanta luz - e aqui entra em ação um providencial eco dos vocalizes zi, zi, zi, zi (ou si, si, si, simone) fragmentando, duplicando e expandindo a festa sonora: uma personagem na outra - enchendo de som o ar.
E eis que surge o punctum da canção: a formiga precisa do canto da cigarra. Ele lhe anuncia a vida, serve de trilha sonora à uma existência destinada ao trabalho. Ouvinte e cantora se confraternizam na aceitação de suas funções complementares.
E como a voz mediatizada - mesmo plugada, manipulada, modificada, alterada pelos instrumentos e suportes técnicos - indicia (revela) a voz que sai de uma garganta, eis Simone e Milton celebrando a amizade através de uma canção amiga. Ou seja, a voz (metafísica) do sujeito da canção só existe porque há a voz de dois indivíduos de carne e osso dando-lhe vida. E "Essa canção é para cantar / Como a cigarra acende o verão / E ilumina o ar".

***

Cigarra
(Milton Nascimento / Ronaldo Bastos)

Porque você pediu
Uma canção para cantar
Como a cigarra
Arrebenta de tanta luz
E enche de som o ar

Porque a formiga é
A melhor amiga da cigarra
Raízes da mesma fábula
Que ela arranha, tece
E espalha no ar

Porque ainda é inverno
Em nosso coração
Essa canção é para cantar
Como a cigarra acende o verão
E ilumina o ar

Zi zi zi zi zi zi

06 outubro 2011

Verdade, uma ilusão

Na coluna de 02/10/2011 (jornal O globo), Caetano Veloso anota: "De que vale a vida se não respondemos ao escândalo que é existirmos com gestos igualmente extremos como a fé em Deus, a dedicação obsessiva a uma pessoa, uma arte, uma causa? (...) A vida vale a sua evidência animal".
"Dying is easy, it's living that scares me to death" ("Morrer é fácil, é viver o que me assusta até a morte"), diria o sujeito da canção "Cold", de Annie Lennox. Sobre a nossa alegria terrível, para suportar o pensamento de Si, da sobrevivência no inferno e céu de todo dia, transformamos o tédio em poesia, inventamos verdades. Forjamo-nos em homens-bomba de estrelas: cantores.
Afinal, "não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus" (Mateus: 4,4). E como Deus usa os homens para ser e estar nos homens viventes na terra, é pela boca do outro que nos situamos (encontramos lugar) no mundo. Aqui ressoa algo de materno: da mãe ideal que alimenta o filho com leite e palavra.
Porém, não há metáforas nem misticismos nesta leitura, posto que toda voz vem de uma pessoa viva: boca, garganta, úvula, saliva. A voz imprime unicidade a pessoa. Há aqui uma constatação da voz e sua autoficcionalização - aquilo que nos resgata do abandono profundo.
Nesse movimento, a canção popular é o diário dos detentos que somos. Pensamos sobre nós através da voz nas canções. E entre mentiras sinceras e falsas verdades nos mantemos atentos e fortes. Não à toa o sujeito da canção "Bogotá", de Criolo, diz: "Se você quer amor chegue aqui / se você quer esquecer a dor venha pra cá / pois a ilusão é doce como mel / e cada um sabe o preço do papel que tem".
É desse convite irresistível à canção que trata o sujeito de "Verdade, uma ilusão", de Carlinhos Brown, Marisa Monte e Arnaldo Antunes. Guardada no disco Diminuto (2010), essa canção tem um sujeito lúcido de sua função: "Eu posso te fazer feliz / Feliz me sentir também / Eu posso te fazer tão bem / Eu sei que isso eu faço bem", diz.
Sujeito cancional, portanto, uma ilusão (ficção), ele sabe tanto o preço do papel que tem, quanto a necessidade urgente do ouvinte em ser cantado, mimado, ninado. Ele fala de si - constituindo "Verdade, uma ilusão" em uma metacanção (canção que pensa teoricamente a própria canção) - para se aproximar do outro. E faz isso exibindo um Carlinhos Brown além do orientador do carnaval. O corpo aqui balança junto com a palavra (semântica) cantada.
Toda vez que uma canção se confessa - "Eu posso te fazer canções / O amor soa em minha voz / Eu posso te fazer sorrir" - ela se inscreve ficcionalmente, revelando a ficção em nós (ouvintes: humanos na terra): a verdade ilusória, a ilusão verdadeira. Pois no fundo "Ninguém precisa decidir / Verdade / Uma ilusão / Digo de coração / Verdade / Seu nome é mentira". Como anota e canta o sujeito da canção.
A verdade é sempre o que está sendo dito e ouvido no instante-já. Ela é o canto paralelo - e mantenedor de - ao escândalo de nossa existência. Aqui a canção se dedica obsessivamente a arte de cantar. Verdades vindas do coração e travestidas na voz de alguém, as canções nos alimentam de palavras, seguram nossa cintura e não nos deixam cair: "Eu posso te fazer ouvir / Milhões de sinos ao redor / Eu posso te fazer canções", canta o sujeito da canção.
É no meio da ponte que vai do real ao ficcional, que vai de mim para o outro, onde podemos ouvir ressoar aquilo que somos, ou podemos ser. A língua que a canção canta é a mesma língua que lhe canta. É assim que "o amor soa em minha voz". O vocálico precede e excede o semântico.
As palavras cantadas guardam sentido, embora não guardem significação. A palavra não nos traduz, é insuficiente para tanto. É na voz de alguém cantando as palavras que nos forjamos: que somos e estamos. E assim fazemos a vida valer a pena. E a ilusão cria a verdade: a "verdade-mais-erro". E o horror de se perceber vivo retorna, reinstala-se. E as canções (de novo) surgem como repostas (cíclicas) ao escândalo. Eis os tais "volteios da dança do espírito" apontados por Caetano. As nossas contrapartidas à vida.

***

Verdade, uma ilusão
(Carlinhos Brown / Marisa Monte / Arnaldo Antunes)

Eu posso te fazer feliz
Feliz me sentir também
Eu posso te fazer tão bem
Eu sei que isso eu faço bem
Roubar-te um beijo num salão
Girar sem perder o chão
Não vou deixar você cair
Cintura
Leve a minha mão
Verdade
Uma ilusão
Vinda do coração
Verdade
Seu nome é mentira

Eu posso te fazer ouvir
Milhões de sinos ao redor
Eu posso te fazer canções
O amor soa em minha voz
Eu posso te fazer sorrir
Meus olhos brilham para ti
E os pés já sabem aonde ir
Ninguém precisa decidir
Verdade
Uma ilusão
Digo de coração
Verdade
Seu nome é mentira

29 setembro 2011

Musa cabocla

"Quanto mais o tempo passa, mais me afasto, mais vejo outras possibilidades de ser que não são propriamente possibilidades femininas, mas possibilidades limpas, como, por exemplo, intrigar-me neuroticamente com o canto dos bem-te-vis, que não é nada, nem masculino nem feminino, é limpo", anota o narrador do livro Rato, de Luís Capucho.
Parece ser nesse "canto limpo", puro, assemântico que se baseia a tradição filosófica de matriz grega, a fim de definir o lugar da voz em nossas vidas: o lugar onde o semântico (masculino) se perde na sedução vocálica (feminina) e, portanto, deve ser evitado.
Porém, assim como também sugere o narrador de Rato - "mais vejo outras possibilidades de ser que não são propriamente possibilidades femininas" -, tal filosofia esquece que todo canto pressupõe uma audição e que a voz sempre vence. Ora, quem foi que disse que o bem-te-vi diz "bem-te-vi" enquanto canta senão a interpretação humana? Ou melhor, nossa tendência a dar sentido a tudo que nos cerca - eliminando os riscos do desconhecido?
A ideia de um canto limpo (assexuado) tenta recuperar o paraíso materno: o casulo infinitamente abundante que nos abrigou por um tempo e para o qual parecemos estar sempre querendo retornar. O canto do bem-te-vi, ouvido como uma representação de um dos sons da natureza, recupera esse canto ideal: inatingível. Mas é sempre um som vazio, preenchido de sentidos pela lógica de quem escuta. Ou melhor, a voz não comunica nada, a não ser a própria comunicação.
O segredo da canção está no fato de que cada voz é única. É na voz que se encontra a unicidade. "Eu minto, mas minha voz não mente", diria o sujeito de "Drama", de Caetano Veloso. É assim que uma "mesma" canção (mediatizada, massiva) afeta cada ouvinte por lugares diferentes. É assim também que uma "mesma" canção, ao ser cantada por outra voz, ganha novos sons.
"A voz não é apenas som, mas é sempre a voz de alguém que vibra em sintonia com os sons naturais e artificiais do mundo em que vive", registra Adriana Cavarero no livro Vozes plurais. O canto é o nada, que é tudo, poderia dizer o narrador de Rato, a respeito dos bem-te-vis que lhe perturbam o pensamento.
O canto de um pássaro e o canto humano não são, obviamente, a mesma coisa. A voz os distingue. A voz humana carrega a palavra que, por sua vez - phoné semantiké - carrega o humano. Jogando com tais categorias, o sujeito de "Musa Cabocla", de Gilberto Gil e Waly Salomão, por exemplo, cria o efeito de presença de si a partir daquilo que fala.
Para tanto, o sujeito (poeta, cancionista) evoca a musa cabocla, híbrida. Ouvintes comuns que somos, só temos acesso àquilo que ela fala através da mediação do sujeito (cancionista, poeta, cantor). Ele ouve e canta: é sereia que canta sentada na pedra a medrar o marinheiro. Classicamente um híbrido (mulher e animal), a sereia/musa aqui é cabocla.
Gal Costa é a musa cabocla do título da canção: aquela que inspira Gilberto Gil e Waly Salomão a compor um discurso a ser engendrado na voz da própria musa. Por trás da voz (ficcional) do sujeito da canção há a voz de uma pessoa de carne e osso: uma garganta.
Feitas refrão, as afirmativas que serpenteiam a letra - "Sou pau de resposta, jibóia sou eu, canela / Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela" - reforçam o desenho (visão) da "Mãe matriz da fogosa palavra cantada / Geratriz da canção popular desvairada / Nota mágica no tom mais alto, afinada" que Gal Costa (voz) encarna.
A finalidade lúdica (poética) de "Musa cabocla" (Minha voz minha vida, 1982) é restaurar o sentido da significação. Dito de outro modo, o sujeito (sereia), através da proliferação de significantes e comparações, deixa a sereia cantar: engendra um canto sirênico em que "quem" fala é tão importante quanto aquilo que é "falado". Um empenho feliz do primado da voz sobre a palavra.
"Mãe matriz da fogosa palavra cantada / Geratriz da canção popular desvairada / Nota mágica no tom mais alto, afinada". Tais palavras guardam o medo que certa filosofia tem com relação à canção, à voz. Interpreta-se que a sereia é causa da perda da razão do indivíduo. Daí o emudecimento progressivo do logos. Esquecendo-se, deste modo, da unicidade inimitável de cada voz e de que é possível pensar com os pulmões.
Sereia, diferente do bem-te-vi, do sabiá, da cigarra, o sujeito de "Musa cabocla" canta palavras: palavras que ele mesmo (musa que também é) engendra no poeta. Travestindo-se na canção, o sujeito (monstro canoro) se presentifica. "Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela", diz.
 
***
 
Musa cabocla
(Gilberto Gil / Waly Salomão)
Uirapuru canta no seio da mata
Papagaio nenhum solta um pio
Sereia canta sentada na pedra
Marinheiro tonto medra pelo mar
Sou pau de resposta, jiboia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela
Coração pipoca na chapa do braseiro
Sou baunilha, sou lenha que queima
Que queima na porta do formigueiro
E ouriça o pelo do tamanduá
Mãe matriz da fogosa palavra cantada
Geratriz da canção popular desvairada
Nota mágica no tom mais alto, afinada
Sou pau de resposta, jiboia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela

22 setembro 2011

Yemanjá rainha do mar

Para uma certa linha de pensamento, metade mulheres, metade animais, as sereias - desde os latinos até hoje - guardam o canto puro, absoluto, primordial, assemântico, inarticulado: o canto sem palavras.
Parece ser assim, por exemplo, que O Agente, personagem do livro O natimorto, de Lourenço Mutarelli, percebe a cantora de ópera com quem desenvolve uma relação obsessiva. Ela é toda voz - pureza e beleza - para ele. Não à toa ela é denominada como A Voz. Narrador, só O Agente consegue ouvir A Voz - logo não sabemos se há palavra cantada ali - fazendo a cantora ser um misto de sereia e musa, pois com sua voz inaudível às outras pessoas, A Voz é o impulso necessário à descoberta de Si de O Agente, a fuga do mundo. Mas também promove o ato narrativo dos acontecimentos.
"Desde que ele a ouviu cantar, não fala em outra coisa", diz A Esposa. "É a Voz da Pureza pra lá, é a Voz da Pureza pra cá". "Por que que eu não posso ouvi-la cantar? Por acaso ela é assim tão sofisticada?". Ou seja, ele ouve e fala. Fala porque sente encanto: um encanto intransferível. Só ao ouvido dele cabe a captação da singularidade da voz. O que, por sua vez, também distingue O Agente das outras personagens. Mais adiante é A Voz quem dirá: "Eu não sou tão delicada assim, dá pra aguentar o tranco".
Leitores de Homero, onde o mito ganha seu registro, filósofos como Adorno e Horkheimer parecem, talvez por terem outros objetivos intelectuais, não atentar para o fato de que além de cantar, as sereias contam Ulisses. O caráter narrativo do canto é emudecido. Além disso, como bem observa Adriana Cavarero, no livro Vozes plurais - Filosofia da expressão vocal: "As vestes do sujeito burguês ficam bastante apertadas no herói de Ítaca".
Está lá na Odisseia: "Não passou nosso barco ligeiro despercebido às Sereias, de perto, que entoam sonoras: 'Vem para perto, famoso Odisseu, dos Aquivos orgulho, traz para cá teu navio, que possas o canto escutar-vos.(...) Todas as coisas sabemos'", diz Ulisses.
Ou seja, mais do que som, o canto das sereias entoa palavras, narra cantando: algo audível aos ouvidos humanos. O canto das sereias homéricas contem o passado, o presente e o futuro de Ulisses. Assim são as canções (certas e erradas) que, ao longo de um dia, promovem as alterações de nossos humores.
Deste modo, podemos pensar que as sereias carregam um canto que mata o homem velho e desperta o homem novo: lúcido da cabeça aos pés de sua condição errante. Herói da razão, Ulisses provou que era possível ouvir as sereias (pensar/sentir com outras partes do corpo) sem que isso levasse à morte (ao fim).
Ao contrário daqueles que percebem a racionalidade desvocalizada, ou o encanto absoluto, as sereias sabem o que dizem. Elas contam ao homem comum aquilo que a Musa conta apenas ao poeta. Elas nos fornecem a fama: o calor de se sentir cantados.
Devido às suas "competências vocais, a relação imediata [das sereias] era com pássaros, e não com peixes. Quem é mudo como um peixe não pode certamente se prestar a hibridar um monstro canoro", anota Adriana Cavarero. Mas as sereias foram conduzidas ao mar.
"A mudança de morada é crucial. A descida para as águas, isto é, a metamorfose pisciforme é acompanhada pela sua transformação em mulheres belíssimas", como também observa Cavarero. Antes monstros barbudos, cujo poder de sedução estava no canto (logos poético), agora, em um mundo videocêntrico, as sereias parecem seduzir antes pela beleza física.
Seja como for, não são poucas as lendas das sereias. No Brasil elas são as rainhas do mar e cantam. Cantam muito. "Minha sereia é rainha do mar / O canto dela faz admirar / Minha sereia é a moça bonita / Nas ondas do mar aonde ela habita", como diz a canção de Dorival Caymmi. Aqui a sereia canta com dó do penar do sujeito.
Médium da sereia e signo de elemento água, Maria Bethânia (Mar de Sophia, 2006) traduz em um canto (quase) devocional - tons graves e baixos - toda a infiltração do mito sirênico em nossa cultura. E tem na canção "Yemanjá rainha do mar", de Pedro Amorim e Paulo César Pinheiro, a melhor companhia.
Bethânia canta (evoca) os nomes da rainha do mar - "Dandalunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá, Inaê, Sereia, Mucunã, Maria, Dona Iemanjá" - elencando a apropriação doce do mito em nosso imaginário.
O sujeito da canção mistura mitos gregos e africanos e coloca o resultado disso para dançar no Brasil ao balanço do mar, ao som da moradora da "loca de pedra": vaidosa, humanizada - íntima do marinheiro (brasileiro) ouvinte.
"O que ela canta? / Por que ela chora? / Só canta cantiga bonita / Chora quando fica aflita / Se você chorar", numa demonstração radical da relação interpessoal que vai da sereia ao ouvinte, e vice-versa. Num jogo lúdico que envolve prazer e dor, encanto e lucidez.

***

Yemanjá rainha do mar
(Pedro Amorim / Paulo César Pinheiro)

Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Quanto nome tem a Rainha do Mar?

Dandalunda, Janaína,
Marabô, Princesa de Aiocá,
Inaê, Sereia, Mucunã,
Maria, Dona Iemanjá

Onde ela vive?
Onde ela mora?

Nas águas,
Na loca de pedra,
Num palácio encantado,
No fundo do mar

O que ela gosta?
O que ela adora?

Perfume,
Flor, espelho e pente
Toda sorte de presente
Pra ela se enfeitar

Como se saúda a Rainha do Mar?
Como se saúda a Rainha do Mar?

Alodê, Odofiaba,
Minha-mãe, Mãe-d'água,
Odoyá!

Qual é seu dia,
Nossa Senhora?

É dia dois de fevereiro
Quando na beira da praia
Eu vou me abençoar

O que ela canta?
Por que ela chora?

Só canta cantiga bonita
Chora quando fica aflita
Se você chorar

Quem é que já viu a Rainha do Mar?
Quem é que já viu a Rainha do Mar?

Pescador e marinheiro
que escuta a sereia cantar
é com o povo que é praiero
que dona Iemanjá quer se casar

15 setembro 2011

Filosofia

No livro Vozes plurais - Filosofia da expressão vocal, Adriana Cavarero investiga como a filosofia tem trabalhado na promoção da própria "surdez", à deriva dos cancionistas, poetas e filósofos que investem no apuro do ouvido.
Para a autora, agindo deste modo, a filosofia nega a unicidade de cada voz, negando por sua vez a especificidade de cada indivíduo. Ou seja, só quando nos distraímos da "obsessiva vigilância" que tal filosofia engendra acessamos particularidades inimitáveis de cada humano de "carne e osso", emissor e destino do som.
Cavarero anota que "a voz de quem fala é sempre diversa de todas as outras vozes, ainda que as palavras pronunciadas fossem sempre as mesmas, como acontece justamente no caso de uma canção". Cantar apresenta a verdade de um vocálico - "é ter o coração daquilo" - e isso desestabiliza as formas generalizadoras - "universalidades abstratas e sem corpo" - do modo como temos desenvolvido o pensamento.
No Brasil, não é à toa que "nossa gente era triste amargurada, inventou a batucada pra deixar de padecer", como diz a canção, dando uma amostra daquilo que uma cultura híbrida, mestiça e miscigenada como a latino-americana pode oferecer ao mundo em contribuição ao pensamento. Talvez isso explique em parte não termos aqui uma escola filosófica forte frente às culturas hegemônicas e tenhamos desenvolvido o ensaio como espaço de reflexão daquilo que (possivelmente) somos.
Cantando juntos mandamos a tristeza embora. Aquela tristeza que quer tomar conta do sujeito da canção "Filosofia", de Noel Rosa - "O mundo me condena, e ninguém tem pena / Falando sempre mal do meu nome / Deixando de saber se eu vou morrer de sede / Ou se vou morrer de fome" -, e que logo cede lugar a outra afirmativa: "Não me incomodo que você me diga / Que a sociedade é minha inimiga / Pois cantando neste mundo / Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo".
Movido por uma filosofia íntima, alicerçada no seu jeito de corpo, o sujeito vai da defesa autopiedosa ao ataque: "Quanto a você da aristocracia / Que tem dinheiro, mas não compra alegria / Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente / Que cultiva hipocrisia". "É, por assim dizer, a 'phoné' que determina a fisiologia do pensamento", como diria Cavarero. Pensar com o corpo inteiro, a plenos pulmões, não com o cérebro.
Livre das amarras que o dinheiro impõe, artista, cantor, sambista, o sujeito da canção exalta a alegria, que, por sua vez, não denega a dor. "Um porto alegre é bem mais que um seguro", ele poderia dizer. Cantada por Mart'nália no disco Pé do meu samba (2002), "Filosofia" ganha valores novos. Afinal, quem melhor do que uma mulher que guarda em si - voz e corpo - os signos do malandro (fingidor de rico) para cantar os emblemas de uma nova filosofia?
Aqui, corpo e palavra cantada mostram como o 'logos' perdeu a voz, a escuta. E se empenham na vocalidade do sujeito afastado das ideias gerais, platônicas. Há portanto uma sabedoria singular na voz do sujeito de "Filosofia": cantar é estar vivo, pensar a plenos pulmões. Lúcido de sua condição (humana) de escravo, através da voz o sujeito faz a sua escolha entre o samba e a hipocrisia: forja uma verdade.
Como Adriana Cavarero atesta: "A voz, qualquer coisa que diga, comunica antes de tudo, e sempre, uma só coisa: a unicidade de quem a emite". Urge criar dispositivos que nos possibilite entender tamanha força historicamente negada: ter ouvidos para ouvir.

***

Filosofia
(Noel Rosa)

O mundo me condena, e ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome

Mas a filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim

Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim

Não me incomodo que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo

Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro, mas não compra alegria
Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente
Que cultiva hipocrisia