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24 março 2011

Eu sou melhor que você

Tudo é ficção. Somos máquinas de inventar. Acreditamos nas nossas invenções. Somos poetas e fingimos sentir o que deveras sentimos. Noutro plano, somos o ator que "não consegue se habituar a viver no corpo imposto, no sexo imposto".
Esta máxima de Valère Novarina - em Carta aos atores e Para Louis de Funés -, lançada depois do autor se perguntar "por que se é ator?", diz muito do (mais que) humano em nós: inventores de palcos e cenários onde possamos viver nossos desejos.
Penso nisso enquanto ouço a canção "Eu sou melhor que você", de Maurício Pacheco. Gravada por Moreno Veloso, Domenico Lancellotti e Alexandre Kassin - no projeto + 2, Máquina de escrever música (2000) -, a canção revela um sujeito estacionado no canto da comparação adolescente e humana daquilo que vai de nós para o outro.
Aliás, a gestualidade vocal cambiante de Moreno, entre agudos e graves típicos da fase em que a voz está em processo de (in)definição, tenciona sobremaneira o que é cantado pelo sujeito da canção: o medo de ser igual, ou inferior, ao outro.
Somos máquinas de cantar. Queremos reconhecimento. Cantamo-nos para afirmar a nossa existência: "Não basta ser inteligente, tem que ser mais do que o outro pra ele te reconhecer", diz o sujeito da canção. Cantamos o outro para, ao diferenciar-mo-nos, promover as conexões necessárias à vida. Cantamos o outro para sermos cantados. "Que prazer mais egoísta / o de cuidar de um outro ser", diria Cazuza.
O sujeito de "Eu sou melhor que você", ao espalhar tal ideologia: de que é melhor que o outro, espelha a potência de cada indivíduo, a vontade de ser mais e melhor. O tom confessional - todo mundo se acha mas eu sou - e as imagens do corpo imposto - "Todo homem tem voz grossa e tem pau grande / e é maior do que o meu, do que o seu" - querem interferir no desenho que o sujeito engendra para si. Ele recolhe o que todo mundo diz e compõe um discurso crítico.
Diante da massa supostamente lúcida - "Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta / Todo mundo tem razão e vence sempre na hora certa / Todo mundo prova sempre pra si mesmo que não há derrota" -, o sujeito assanha o mundo: brinca com a profusão das certezas e se sugere frágil. Ele revela a vulnerabilidade de todo mundo.
"Todo mundo é mais bonito do que eu mas eu sou mais que todos", diz o sujeito. O que poderia ser ouvido como celebração narcísica, resulta em um sujeito antinarciso, posto que assina: "Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém".
Listada as supostas qualidades de todo mundo, o sujeito da canção se apaixona, se arrisca, se expõe e sofre. Ele admite a coexistência do orgulho e do amor. Ele é todo mundo e é ele ao se distanciar para cantar que, na base, somos carentes profissionais fingindo suingue e felicidade melhores.



***

Eu sou melhor que você
(Maurício Pacheco)

Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta
Todo mundo tem razão e vence sempre na hora certa
Todo mundo prova sempre pra si mesmo que não há derrota
Todo homem tem voz grossa e tem pau grande,
E é maior do que o meu, do que o seu, do que o do Pedro Sá
Todo mundo é referência e se compara só pra ver que é melhor
Todo mundo é mais bonito do que eu mas eu sou mais que todos
Todo mundo tem suingue, é feliz, é forte e sabe sambar
Todos querem mas não podem admitir a coexistência do orgulho e do amor porque:
Eu sou melhor que você, Boa viagem.
Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém
Todo mundo diz que sabe e quando diz que não sabe é porque,
é charmoso não saber algo que todas as pessoas já sabem como é
Todo mundo é especial, é original, é o que todos queriam ser
Não basta ser inteligente, tem que ser mais do que o outro pra ele te reconhecer
Todo mundo ganha grana pra dizer que ela não vale nada
Todo mundo diz que é contra a violência e sempre dá porrada
Todos querem se apaixonar sem se arriscar, nem se expor e nem sofrer
Todas querem vida fácil sem ser puta e com reputação,
Se reprimem e começam a dizer:
Eu sou melhor que você
Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém

É melhor que você,
Mais ninguém é melhor que você

Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta

2 comentários:

Maritzel disse...

Me encantó, como siempre. La canción está bacana, la letra actual, precisa! Gracias otra vez.

Tu estilo de escribir me fascina. Creo que soy tu fan. :P
Saludos

Anônimo disse...

Nada mais atual para o momento em que somos cada vez mais avatares, figuras que brilham na tela do computador, cada vez mais conhecidos, cada vez mais sozinhos.

Cada vez que ouço essa canção na voz da cantora Tássia Campos, por exemplo, aqui em São Luís, tão jovem, tão segura de seu talento e tão insegura quanto a imagem que a representa enquanto artista, amplio a mensagem para todos nós, imersos na realidade virtual das representações.

(...)

Reconheço o poeta naquilo que ele brilha, na força da palavra e da linguagem. Ele é melhor que eu, leitor. Mas quando a gente fecha o livro, quando a canção acaba, quando as luzes se apagam, quando a cortina se fecha, a gente interioriza o poeta e sua poesia, que fica marcada na gente, mas nele não, que nem sabe exatamente quem é o leitor.

Aí a gente se pergunta: Quem é o melhor?