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24 novembro 2011

Mãe

Há algo de materno no ato de cantar e ser cantado. A canção quer suprir, pela fruição estética, a falta que nos move: o suprimento sirênico do aconchego intra-uterino - o tempo/espaço que tudo cede, de graça.
Fora dali tudo é busca, troca, empenho individual cansativo e, muitas vezes, fracassado. Mas não nos enganemos: a mãe, ao cantar o filho, também se canta, vive - posiciona-se em um mundo onde a imagem quer ser tudo, mas não ultrapassa a epiderme.
É desse modo que a trilha sonora de cada existência - pessoal e incopiável, por mais que o mercado aja com a massificação: e é para isso que têm agido os melhoramentos técnicos de gravação e reprodução da voz - diz aquilo que somos, ou queremos ser.
Quanto à unicidade de cada voz, diz o sujeito-cantor da canção "Mãe", de Caetano Veloso: "Eu canto, grito, corro, rio e nunca chego a ti".
Além de apontar o empenho sem sentido restaurador, posto que a phoné antecede o semântico, o sujeito canta o desejo de volta, de recolhimento à escuridão abundante do ventre (estrela azulada) materno. "Minha mãe é minha voz", poderia dizer o sujeito.
A impossibilidade de restituição - a incompletude ontológica - parece ser o motor do humano, faz a vida valer a pena pois sublinha a dor e a alegria do indivíduo único e, portanto, solitário. A canção é suplemento, o cantor - ao dizer aquilo que precisamos ouvir - é amigo intimo, parceiro, mãe.
Guardada no disco A Dama indigna (2011), na voz que flui entre o cool e o excesso de Cida Moreira, "Mãe" ganha contornos luminosos. Assumindo a persona do sujeito que descobre em nada valer ser filho da santa, e melhor ser filho da outra, Cida constrói o sujeito que mesmo indigno, e exatamente por ser indigno - afinal todos o somos, pois nunca alcançamos a meta: a língua materna -, canta e quer ser feliz.
Voz cambiante, vinda de um trabalho preciso e lúcido com a palheta vocal, Cida realça a sofisticação da relação cantor-ouvinte (mãe-filho). Ao mesmo tempo em que dignifica toda a possibilidade relacional que vai do sujeito à mãe idealizada.
Com uma voz que se movimenta brusca, passional, rude, cruamente na tessitura melódica, Cida remelexe os signos dionisíacos da díade (fusão narcísica) mãe-filho. “Quem chora por amor é um imbecil / Quem vive de ilusão é muito mais”, dirá a cantora noutra faixa do mesmo disco.
A interpretação desmaculada - entre afagos e sopapos - da canção amplia os significantes de uma letra toda feita em dísticos (versos emparelhados, a dois) para sagrar o objeto-título.
O desejo de retorno ao uno é atravessado por uma nesga de raiva incontida contra aquela que colocou o sujeito-cantor no mundo. Bem diferente, por exemplo, da delicada versão realizada pelo grupo O tao do trio que, no disco Uns caetanos, investe em uma canção de ninar - resposta feliz aos trechos vindos dela: da voz materna.
Toda canção - significada individualmente - é colo de mãe. E seja como for, "rei sem fim", "homem tão sozinho" e "bicho triste", a mãe brilha naquilo que o sujeito é. As referências ao universo sonoro - palavras, guitarras, vento, cidades, marés, cigarras - intensificam o anseio cancional, a vontade de reparo no desamparo existencial.
Os elementos dispersos desde a separação, são recolhidos pela canção, pela voz do sujeito, de Cida Moreira, a fim de equalizar e construir o colo estético-sonoro, inalcançável na "vida real", desejado por todo indivíduo. Ao cantar a mãe ele engendra um gozo do prazer já vivido. Chora, geme e rir de dor e deleite.

***

Mãe
(Caetano Veloso)

Palavras, calas, nada fiz
Estou tão infeliz

Falasses, desses, visses não
Imensa solidão

Eu sou um rei que não tem fim
E brilhas dentro aqui

Guitarras, salas, vento, chão
Que dor no coração

Cidades, mares, povo, rio
Ninguém me tem amor

Cigarra, camas, colos, ninhos
Um pouco de calor

Eu sou um homem tão sozinho
Mas brilhas no que sou

E o meu caminho e o teu caminho
É um nem vais nem vou

Meninos, ondas, becos, mãe
E só porque não estais

És para mim que nada mais
Na boca das manhãs

Sou triste, quase um bicho triste
E brilhas mesmo assim

Eu canto, grito, corro, rio
e nunca chego a ti

17 novembro 2011

Dos prazeres, das canções

Em 1933, Oswald de Andrade, em um de seus lúcidos lances de vista sobre a cultura brasileira, chamava à atenção "pelo direito de ser traduzido, reproduzido e deformado em todas as línguas". Ontologicamente híbrida, a cultura (popular e de massa) brasileira tem no samba uma de suas proposições de investigação identitária.
Transcriando-se, sendo deformado, alterado, reproduzido, transtraduzido - tambores do candomblé e Jesus de Nazaré - culturalmente, o samba parece sintetizar as muitas vozes (plurais) que lhe constituem. "Liquidificador de orixás", como diria o sujeito da canção de Davi Moraes, "a elétrica magia da nação / (...) / lá na praça o poeta estende a mão / e a voz do povo canta".
Bem cultural, simbólico e patrimonial, o samba tem aceitado todos os argumentos (mutantes) geradores de mudança, ao longo do tempo. E resistido. Utilizando a antropofagia (que nos salva), ele muda para continuar. Trai para ser e estar tradição.
Não há um verdadeiro e único (puro) samba. O que, na prática, seria um samba-de-raiz? O que há são apropriações de um bem simbólico para fins de mercado. Toda tentativa de preservação que não tenha como matriz a noção de que a traição à tradição faz parte do processo de manutenção desta, resulta esterilizante. Na maioria das vezes, soa mais falso do que a falsificação que certos puristas tentam combater.
"Ninguém me salva / ninguém me engana / Eu sou alegre / Eu sou contente / Eu sou cigana / Eu sou terrível / Eu sou o samba", diz a canção "A voz do morto", de Caetano Veloso, na voz de Aracy de Almeida.
É neste contexto de mirada estética que surge a canção "Dos prazeres, das canções", de Péricles Cavalcanti. Cancionista responsável por momentos importantes em nossas canção e poesia, Péricles cria um sujeito que dança ao som dos inventores e mestres do passado-presente, apropriando-se de suas vozes como um médium antropófago, para cantar aquilo que é: canção, prazer estético.
Além e aquém dos pseudos desejos de pureza, o sujeito dessa canção é "aquele que o tempo não mudou, embora outro". O sujeito se insere na linha evolutiva da canção exatamente por não se acomodar, por imputar transformações - criar novos modos de cantar e ser feliz.
As notas de melancolia que a voz de Péricles Cavalcanti - timbre baixo, sereno - entoam figurativizam o ataque à adaptação esterilizante, tradicional e moderno que o sujeito da canção é. Ou seja, a voz do cantor teatraliza com sua gestualidade vocal a dança mítica que a canção sugere ao ouvinte.
Alheio aos debates sobre manutenção ou mudança, o samba aqui atravessa a avenida feliz: deglutindo e devolvendo ao mundo as vozes que o mundo lhe oferece. "A minha estirpe sempre esteve ao seu dispor. Me dê ouvidos que eu lhe digo quem eu sou", diz o sujeito, pela voz tranquila (quase canto-falado) de Péricles Cavalcanti.
O sujeito é um conjunto. Uma legião. Deus e o diabo na terra tropical. Do sol. Palavra e música, ele se materializa na voz. Ele antecede, como qualquer canção, à divisão nítida entre seus significantes, suas partes que, agora, misturadas, hibridizadas, já não tem mais sentido fora do todo.
Indivisível e traidor, ele - o samba, a voz do sujeito e a voz do cantor - sonha e arde de amor. Feitiço (in)decente que solta e prende a gente. Liberta-nos da mestiçagem facilmente adaptada ao conservadorismo. "Eu sou aquele", repete o sujeito. Aqui, ele canta o dali, o de ontem, o de hoje, o de sempre.
O sujeito toma seu lugar na linha que tem antecessores da estirpe de "Herivelto, Caymmi, Sinhô, Valente, Wilson Batista, Noel, Heitor dos Prazeres". A serviço dos prazeres, das canções os astros dançam e reluz - fazem coro.
Guardada no disco, sintomaticamente, chamado de Canções (1991), "Dos prazeres, das canções" faz da voz de seu cantor - suas modulações, gestos, performance - a chave de sua audição, por condensar a reflexão sobre si - sobre o cantar, sobre ser samba, sobre ser canção.
O eterno, no sujeito, é canção e identidade. Em primeira pessoa, a letra não deixa dúvida quanto à indistinguível concretização da mistura daquilo que é dito com quem diz. Sujeito-canção - receptor e emissor: canção. "Eu sou doutor nos sentimentos de alegria e de dor, dô, dô o que você quiser", diz este, que é aquele.

***

Dos prazeres, das canções
(Péricles Cavalcanti)

Eu sou aquele
Que o tempo não mudou
Embora outro, eu sou o mesmo
Eu sou um mero sucessor
A minha estirpe
Sempre esteve ao seu dispor
Me dê ouvidos que eu lhe digo quem eu sou

Sou Herivelto, sou Caymmi
Eu sou Sinhô
Eu sou Valente, eu sou Batista
Eu sou Noel, eu sou Heitor
Dos prazeres, das canções
Eu sou doutor
Nos sentimentos de alegria e
de dor, dô, dô o que você quiser

Tô, tô, tô
Pro que der e vier

09 novembro 2011

A voz do coração

Em A pele que habito, filme de Pedro Almodóvar, a jovem Norma (Ana Mena), brincando distraidamente no jardim, cantando os versos de "Pelo amor de amar", de José Toledo e Jean Manzon, desperta a mãe marcada por um incêndio que lhe desfigurou o corpo.
Em uma torção mítica feliz, a filha é a sereia da mãe. A voz de Norma - suas inflexões infantis, seu esforço para cantar em português uma canção de ninar desnaturada - dá o sopro de vida que Gal (a mãe) necessita. "O coração do mundo canta no meu coração / Meus pés seguem sozinhos a dançar / Eu não conheço em mim a grande dor da solidão / Se em tudo eu encontro o dom de amar", canta.
E ao mesmo tempo, é essa a voz que também direciona a personagem à luz, a ver-se refletida em sua aparência aterradora, ao fim trágico e irrefutável. Desse modo, a voz do coração da criança é o veneno-remédio de Gal. "Só a morte apazigua esse nada-mais-tem-sentido que a decrepitude nos sussurra a todo instante. Canto de sereia às avessas convencendo Ulisses de que o mar secou", anotaria o narrador do livro Minha mãe se matou sem dizer adeus, de Evandro Affonso Ferreira.
As consequências do gesto de furtar da mãe o papel de sereia definirá a existência da filha. E a trama de Almodóvar. Mais tarde, a audição da mesma canção, agora em espanhol e na voz de Buika (uma cantora profissional), arrastará a filha ao destino.
"Pelo amor de amar / Quero ser a luz que sorrir na flor / Pelo dom de amar / Quero ser a flor que se deu de amor", encerra a canção gravada por Ellen de Lima em 1960 para o filme Os bandeirantes, de Marcel Camus.
Tenho dito, e repito, que somos alguma coisa feita para ser cantada. E cantante. Sustentamo-nos na voz. Mas não é qualquer canção. E, principalmente, não é qualquer voz. A voz que (me) canta é a voz que governa (meus) mundos.
Em geral, pela nossa trajetória histórica e genética, pensamo-nos (nós: latino-americanos) com o corpo todo (homo ludens pulsando), e a voz tem presença decisiva nesse processo, como uma resposta intuitiva ao raciocínio colonizador, posto que a voz convida ao movimento: à dança.
"Nunca fomos catequizados, fizemos foi carnaval", diria Oswald de Andrade. A palavra escrita nunca foi suficiente para nós. O empenho da palavra falada sempre teve mais valor do que o da palavra escrita. Muito embora, em um gesto típico de cópia mal sucedida e subalterna, tenhamos burocratizado em excesso nossos pensamentos e palavras, atos e omissões.
Mais do que qualquer outros povos, estamos melhor preparados, porque fundamo-nos sobre os atos de criar e conectar-se, para viver o mundo contemporâneo. O jeitinho é nosso veneno-remédio, nossa sereia a nos arrastar à vida (empurrar para frente) e à morte.
Digo tudo isso para destacar a beleza da voz de Jussara Silveira cantando "A voz do coração", de Celso Fonseca e Ronaldo Bastos, no disco Ame ou se mande (2011). Há nas inflexões vocais de Jussara - nas nuances sutis nas alturas melódicas - um descompromisso (natural e espontâneo) com aquilo que é dito. Voz que luta eroticamente com uma melodia em soluços, compassada.
Já tendo sido gravada por Celso Fonseca, com Jussara Silveira "A voz do coração" ganha contornos sirênicos sedutores. Jussara e sua voz nos arrastam para um campo onde somos amor da cabeça aos pés: desperta em nós a nostalgia da pura interioridade. Semelhante à criança que desperta a mãe.
"Quem poderá em vão calar / a voz do coração?". A pergunta inicial do sujeito parece querer refletir a nossa dúvida humana. Entre a razão (o logos desvocalizado) e a emoção (a vocalização do saber) o coração canta como contrapartida estética ao abandono - "Se o amor quiser partir num dia de manhã sem avisar".
É esta voz que dita o rumo a ser seguido pelo sujeito cantor da canção. Fazer do limão uma limonada, da solidão um amor em paz, equilibrar dor e alegria no estético - na criação - são ensinamentos vindos do coração. A voz de alguém cantando anuncia que há um ser único e de carne e osso vibrando-lhe no ar.
Ao contrário da outra "canção de fossa", porque ao invés de pensar em causas e efeitos, criou, transcriou tudo em canto, o sujeito decreta: "Meu mundo não caiu preciso lhe falar / eu gosto de voce demais // Preciso lhe dizer de todo o coração / a falta que você me faz". Precisa e diz.
Sem o outro que lhe abandonou, o sujeito não cantaria. É nisso que ele foca, cantando para mandar a tristeza embora, ou melhor, para hibridizá-la à alegria e uni-las no canto necessário à vida, em um exercício de criatividade desprendido da carga pesada que é viver. Aqui, a voz poética (da memória, do coração, em certa medida) é o estabilizador - sem ela o ser humano não suportaria estar vivo.
Dando vida a este sujeito cantante, Jussara Silveira, tal e qual a personagem Norma de Pedro Almodóvar, coloca-nos diante do espelho: é a sereia que promove o movimento, convida-nos à criação. E ao final, como diria o sujeito de "Ilusão à toa", de Johnny Alf: "Meus olhos sentem / Minhas mãos transpiram / É um amor que eu guardo há muito / Dentro em mim / E é a voz do coração que canta assim / Assim". E "quem poderá em vão calar seu coração?".

***

A voz do coração
(Celso Fonseca / Ronaldo Bastos)

Quem poderá em vão calar
a voz do coração?
Se o amor quiser partir num dia de manhã
sem avisar

A voz me dita o que fazer
tingir de outra cor a cor da solidão
Fazer dessa manhã amor em paz

Meu mundo não caiu preciso lhe falar
eu gosto de voce demais

Preciso lhe dizer de todo o coração
a falta que voce me faz

Quem poderá em vão calar meu coração?

03 novembro 2011

Aquela velha canção

"Este fio é a única coisa que me liga ainda à nossa vida. (...) Porque tu me falas. (...) Neste momento, respiro porque tu me falas", diz a personagem criada por Jean Cocteau para o monólogo (ao telefone) A voz humana.
Mesmo mediada, gravada, reproduzida a voz de alguém é inimitável. E a voz de quem se ama é o sopro na alma do amador. Ouvir-se pela voz de alguém restitui-nos à vida. A personagem de Cocteau, abandonada pelo amado que se casará com outra, só existe porque há alguém - ligado à ela pelo fio telefônico - que lhe permite viver, falar, cantar.
Construída num momento em que se discutiam as novidades tecnológicas nas transmissão e reprodução da voz humana, atravessada pelas falhas técnicas dos aparelhos, o que causava estranhamento entre a voz e seu dono, a peça de Cocteau fala-nos da imaterialidade da pessoa. Ou melhor, da presença da pessoa na materialidade da voz.
A voz carrega toda a mensagem da alma humana. Imperfeitas ou não, as máquinas ajudam a presentificar alguém distante. Ao dar play, trazemos o cantor para o nosso lado. A voz do cantor nos liga à vida. "Quando eu te ligar cantando aquela velha canção / Não diga que estou enganado", diz o sujeito da popular, direta e brejeira "Aquela velha canção".
Se no caso da peça de Cocteau temos em cena "apenas" aquele que ouve e engendra falas passionais apartir da audição "inaudível" ao expectador, na canção "Aquela velha canção", de Carlinhos Brown e Marisa Monte, temos em cena a voz do sujeito que liga o (e para o) outro, a fim de evidenciar o amor.
Somos seres sonoros - ilusões sonoras, verdades fabricadas. E as trilhas que emolduram nossa existência tem importância decisiva naquilo que somos. Certo dessa certeza, o sujeito canta: "Quando eu te ligar cantando aquela canção / Não diga que não sente nada". É no canto do amor que as personagens vivem: são e estão no mundo.
Cantar aquela velha (sempre nova) canção é fazer o amor amar, é disparar a memória afetiva e tudo aquilo que fomos e/ou poderíamos ter sido. E não à toa o sujeito diz: "Quando eu te ligar cantando aquela canção / Pra te desnortear, te ferir com carinho / É pra fazer doer no seu ouvido a nota melhor do nosso amor".
E aqui entra a importância da interpretação de Marisa Monte. Trabalhando com acelerações e desacelerações no andamento entoativo, ao cantar a expressão "aquela canção" oitava acima do restante do canto, a cantora desperta a dor ("te ferir com carinho") no ouvido afetivo do destinatário. Um lance de forma e conteúdo bem resolvido.
Além disso, as frases longas, que parecem não querer caber na linha melódica, indiciam a urgência do que é dito (cantado) pelo sujeito. Atuando nestes momentos a contenção dos alongamentos vocálicos na voz de Marisa Monte. Ela, que tem no excesso de presença da própria voz - seja na palavra cantada, seja nos vocalizes - uma assinatura cancional, consegue o registro ideal para desenhar o sujeito dessa canção.
Diferente da situação criada por Cocteau, o sujeito da canção finge não estar numa situação conversacional. Ele lança o aviso/convite para que "quando ligar" o ouvinte tenha a atenção necessária para escutir o que quer saber de verdade: o amor, a voz do outro que lhe dá vida - "Alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, amor". Alôs, luas e amor também uma oitava acima do comum da altura da canção, figurativizando "a nota melhor do nosso amor".
E eis que surge mais um aspecto metacancional dessa canção: consciente de sua função de cantor, o sujeito diz o que irá fazer, fazendo. Anuncia o canto, cantando. Ao ritmo de sons interioranos, caipiras, próximo às melodias que ouvimos à beira da estrada, na boleia de um caminho. "A saudade então aperta o peito / Ligo o rádio e dou um jeito / De espantar a solidão", diria o sujeito da canção "Caminhoneiro", de Roberto Carlos, Erasmo Carlos e John Hartford, um possível destinatário da mensagem do sujeito de "Aquela velha canção".
Guardado no disco O que você quer saber de verdade (2011), o sujeito de "Aquela velha canção" se desnuda, pois, assim como o ouvinte de sua mensagem, nada, nada, nada está resolvido. A não ser o tudo, tudo, tudo de ser cantor. Apesar da mágoa, o sujeito permanece sendo o cantor do outro, posto que assim também se canta e encontra um lugar no mundo. Ele canta a interdependência amorosa, via telefone. Ele sabe que, através do telefone móvel, ele pode estar o tempo todo, mesmo com o passar do tempo, ao lado do outro.
Cantor, emissor da palavra cantada, está no querer do sujeito mandar ou não o outro para o inferno - silenciar."O inferno nem é tão longe", diz o sujeito da canção da Nação Zumbi. Já para o sujeito de "Aquela velha canção", enquanto houver amor, canção, o inferno é longe. Afinal, no canto recíproco as personagens se mantem no paraíso.
O sujeito é do tempo em que a gente se telefonava. Tal e qual o amado da personagem de Cocteau, apesar de ter esquecido certas dores, ele está irremediavelmente ligado ao ouvinte, pela lei irrevogável do canto. Um (cantor) vive no canto do outro (ouvinte). E vice-versa. Inferno e céu de todo instante.
Frio, mas motor de calor (presença), o telefone é a coisa que mantem as personagens vivas. Mediador do afeto, ele facilita o contato, reabre os sentimentos, notifica o (nosso) amor. Jogando com o que pode e o que não pode ser, já que quem fala está (palavra cantada) e não está (corpo) aqui/agora, os instrumentos de reprodução estão à disposição de nossas mentiras sinceras (real/ficção), da vida, vida que não menos nossa que da canção.

***

Aquela velha canção
(Carlinho Brown / Marisa Monte)

Quando eu te ligar cantando aquela velha canção
Não diga que estou enganado, estou resolvido
Vou dar férias pro meu coração
Confesso que fiquei zangado, eu fiquei magoado,
Mas agora passou, esqueci
Não vou te mandar pro inferno porque eu não quero
E porque fica muito longe daqui

Quando eu te ligar cantando aquela canção
Pra te desnortear, te ferir com carinho
É pra fazer doer no seu ouvido a nota melhor do nosso amor

Quando eu te ligar cantando aquela canção
Não diga que não sente nada
É pra fazer doer no seu ouvido a nota melhor do nosso amor

Alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, alô, a lua, amor