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26 janeiro 2012

Cinema americano

O conto "Caso na roça", de Amador Ribeiro Neto, transcria o conto "Saparalha" de João Guimarãres Rosa. Os protagonistas Primo Ribeiro e Primo Argemiro agora tremem reagindo à febre da "maldita". Ambos soropositivos e isolados "ali, na beira do Rio Sanhauá, pras bandas da Paraíba" - ligados pelo sangue parental e "envenenado", como diria o sujeito da canção "O gosto do azedo", de Beto Lee.
Assim como as personagens rosianas, porém deslizados esteticamente para outras (novas) situações narrativas, os dois parecem ser o desenho nítido do trecho - "mais alegre" - da cantiga que Rosa usou como epígrafe de seu conto: "Canta, canta, canarinho, ai, ai, ai... / Não cantes fora da hora, ai, ai, ai... / A barra do dia aí vem, ai, ai, ai... / Coitado de quem namora!...".
Cuidando um do outro, os primos repassam os (des)caminhos que os separaram do grande amor, apaixonados que são pelo mesmo moço bonito que fugiu com um vaqueiro "vestido com roupa de dia-de-domingo". "Não sei, não... Só sei é que se ele, por um falar, desse de chegar aqui de repente, até a febre sumia...", diz Primo Ribeiro. "É... Se ele chegasse, até as manchas desapareciam", completa Primo Argemiro.
Tanto em "Sarapalha", quanto em "Caso na roça", Primo Argemiro ama e sofre em silêncio, sem nunca ter consumado sexualmente o amor. "Eu também gostei dele, Primo... Mas respeitei sempre... respeitei você... sua casa... Nós somos parentes", diz Primo Argemiro. Aliás, está na revelação do desejo o ápice dos dois contos. Tudo se fragmenta. Laços e cuidados são rompidos. "Fui picado de cobra", diz Primo Ribeiro antes de expulsar o outro.
Guardado no livro Quartas histórias, organizado por Rinaldo de Fernandes, "Caso na roça" tematiza o mergulho febril das personagens pelas veredas e emboscadas do enamoramento - "Coitado de quem namora!". E é na construção formal que o conto trabalha tais questões. Ou melhor, faz da forma conteúdo.
"Primo Ribeiro escolhe cedês pra rodar enquanto desce novas músicas da Internet", anota o narrador. E aqui está o punctum do conto: títulos de canções e/ou cancionistas são citados aqui e ali, ao logo do texto, tecendo uma trilha sonora ao acontecimento. "Os discos de Caetano Veloso vão tocando: Eu não peço desculpa, Noites do Norte", "Cazuza começa a rolar: O tempo não pára, Só se for a dois", anota o narrador.
Este artifício latino-americano e neobarroco de experimentar e colar referências e ícones de diversas artes constitui a estrutura e o conteúdo do conto de Amador Ribeiro Neto. Caetano Veloso, Cazuza, U2, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Machado de Assis se aproximam e dançam ao ritmo da narrativa, da montagem artística.
É por esta entrada que chego à canção "Cinema americano", de Rodrigo Bittencourt. Gravada por Thaís Gulin, no disco ôÔÔôôÔôÔ (2011), o sujeito transita entre a primeira, a segunda e a terceira pessoas enunciativas. Pode se ouvir a voz de alguém diante do espelho, ou a voz de alguém que aponta o outro, por vezes, incluindo-se.
Isso porque o termo "nego" (fresta da canção), do primeiro verso - "Tão homem tão bruto tão coca-cola nego tão rock n'roll" - pode estar fazendo menção a outra personagem, ou a si (ao sujeito que fala). Afinal, como anota o sujeito de outra canção: "Neguinho que eu falo é nós".
Cheia de si - o sujeito ou de quem ele fala, nós -, a personagem é confrontada com suas certezas. Supostas conquistas e verdades contrastam com as afirmativas da canção: "É preciso mais que um soco pra se fazer um som um homem um filme / É preciso seu amor seu feminino seu suíngue / Pra ser bom de cama é preciso muito mais do que um pau grande / É preciso ser macho ser fêmea ser elegante", canta uma Thaís Gulin tranquila e segura na transmissão da mensagem.
E é assim que, noutro plano de interpretação, o sujeito de "Cinema americano" parece ter como interlocutor o sujeito de "Eu sou melhor que você", de Moreno Veloso, em especial quando este destaca: "Todo homem tem voz grossa e tem pau grande, / E é maior do que o meu, do que o seu, do que o do Pedro Sá / Todo mundo é referência e se compara só pra ver que é melhor / Todo mundo é mais bonito do que eu mas eu sou
mais que todos / (...) / Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém". A voz cancional criada por Rodrigo Bittencourt elenca, mistura e revela inúmeros símbolos e ícones de consagração no universo pop a fim de destroná-los em suas qualidades (significantes) e promessas de felicidade, reposicionando-os dentro da canção. E, claro, não poderiam faltam as referências cancionais: "Prefere ao invés de Slayer ouvir Caetano ouvir Mano Chao / Não que Slayer não seja legal e visceral / A expressão do desespero do macho americano é normal / Esse medo da face fêmea dita por Cristo é natural".
"O cinema falado é o grande culpado da transformação / (...) / Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição / Não entende que o samba não tem tradução", sugere a canção "Não tem tradução", de Noel Rosa. Por outro lado, a expressão "Prefiro os nossos sambistas" é o único trecho que se repete na letra da canção "Cinema americano": ecos e diálogos atemporais.
Personagem de "Cinema americano" e de "Caso na roça", a canção popular atravessa e é marcada no projeto mesmo de existir na América Latina. Por aqui, tudo é singular e dói e é absorvido, tecido à vida. O narrador do conto e o sujeito da canção são observadores da nossa vida urbana e incorporam organicamente as observações na produção ficcional: no conto e na canção.
"Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta", diz a canção de Moreno. "Coitado de quem namora", diz a cantiga recolhida por Guimarães Rosa. "A si mesmo", poderia completar o sujeito de "Cinema americano", em seu destaque do "tão narciso", da admissão da coexistência do orgulho e do amor.

***

Cinema americano
(Rodrigo Bittencourt)

Tão homem tão bruto tão coca-cola nego tão rock n'roll
Tão bomba atômica tão amedrontado tão burro tão desesperado
Tão jeans tão centro tão cabeceira tão Deus
Tão raiva tão guerra tanto comando e adeus
Tão indústria tão nosso tão falso tão Papai Noel
Tão Oscar tão triste tão chato tão homem Nobel
Tão hot dog tão câncer social tão narciso
Tão quadrado tão fundamental
Tão bom tão lindo tão livre tão Nova York
Tão grana tão macho tão western tão Ibope
Racistas paternalistas acionistas
Prefiro os nossos sambistas

A ponte de safena Hollywood e o sucesso
O cinema a Casa Branca a frigideira e o sucesso
A Barra da Tijuca Hollywood e o sucesso
Prefiro os nossos sambistas

Prefiro o poeta pálido anti-homem que ri e que chora
Que lê Rimbaud, Verlaine, que é frágil e que te adora
Que entende o triunfo da poesia sobre o futebol
Mas que joga sua pelada todo domingo debaixo do sol

Prefere ao invés de Slayer ouvir Caetano ouvir Mano Chao
Não que Slayer não seja legal e visceral
A expressão do desespero do macho americano é normal
Esse medo da face fêmea dita por Cristo é natural

É preciso mais que um soco pra se fazer um som um homem um filme
É preciso seu amor seu feminino seu suíngue
Pra ser bom de cama é preciso muito mais do que um pau grande
É preciso ser macho ser fêmea ser elegante

Prefiro os nossos sambistas

19 janeiro 2012

Roupa prateada

Para entender as especificidades estético-semânticas de uma canção, é preciso atentar às várias pontas (dimensões) que lhe compõem estrela. Tomando como principais dimensões letra, música e voz, podemos empreender a viagem no campo da significação.
A melodia precisa equilibrar o verbo-textual. A letra precisa "dizer" o ritmo-melódico. Mas é na dimensão vocoperformática que tudo (as intenções) se sustenta. É na unicidade que a gestualidade vocal (corporal - produção de presença) imprime à canção que esta se distingue. É aqui também que a canção ilumina a unicidade do ouvinte: oferecendo o calor (recanto e brilho) que ele precisa.
Mas há muitas outras dimensões. Entre elas, harmonia, preparo técnico, programação eletrônica, manipulação sonora, o uso da língua. E, assim, analisar canção vai se constituindo como um ato complexo que começa no ouvir e sentir, fruir e explicar os vários fatores semióticos produtores de sentido.
Com um texto em primeira pessoa, a canção "Roupa prateada", de Zé Rodrix, registra a ponte que facilita o trânsito entre o sujeito comum e o sujeito cantor. O título da canção diz muito: a roupa prateada e o cabelo comprido são as fantasias estéticas (e sociais) que o primeiro usa para acionar dispositivos acústicos no ouvinte e para chegar a ser o segundo.
Cantando a sua experiência subjetiva e singular, ancorado no figurino propício, o sujeito mostra a outra face: artística. Constrói-se "em sombra, em luz, em som magnífico" diante dos ouvidos e olhos do outro. Enquanto dura a canção, enquanto a roupa lhe cobre o corpo ele é e está no mundo: pulsa em cena. Tudo é presente: agora - estado febril do artista. Ao futuro a canção.
Nem antes, nem depois: o sujeito está no palco, brilha prateado sob a atenção luminosa do ouvinte. "Desde pequeno que eu tinha vontade de chegar aqui / E ficar na frente de uma banda como essa e cantar assim", diz. Cantar é o empenho e o privilégio de sua vida. "Meu coração não mente quando canta e diz / Eu faço exatamente o que sempre quis", diria o sujeito de outra canção.
Talvez lúcido de seu poder sirênico, mas sem querer ser expulso da República platônica (onde o logos está desvocalizado), o sujeito de "Roupa prateada" avisa: "Eu só preciso dizer pra vocês que eu não ofereço perigo / O que eu tenho pra lhes dizer é somente aquilo que eu digo", desdobrando os versos de uma outra canção: "Não me olhe como se a polícia andasse atrás de mim". Ou seja, como querer que o artista viva sem mentir, sem fazer uso de seu dom de iludir - na imitação da vida?
Dito de outro modo, ele parece ecoar o sujeito de "Sangrando", quando diz: "Quando eu soltar a minha voz / Por favor, entenda / É apenas o meu jeito de viver / O que é amar". Ele é pessoa se entregando, usando o poder da arte para existir com os homens - seus irmãos na terra.
Para o sujeito de "Roupa prateada" uma canção não acaba no derradeiro acorde. Ela reverbera no ouvinte atento à verdade da voz que canta por muito tempo. "Vocês só vão entender quando chegar em casa muito tempo depois", diz. E encanta e enreda o ouvinte:"E vocês vão voltar, / e vão escutar outra vez".
Marya Bravo é dona de uma das vozes mais privilegiadas do Brasil. Cheia de recursos, amplitudes de emissão e possibilidades. E ela sabe disso. Usa seu instrumento com lucidez e tesão. Sua voz amplia as especificidades estético-semânticas de toda canção. E não seria diferente com esta canção de seu pai, Zé Rodrix.
Guardada no disco De pai para filha - Marya Bravo canta Zé Rodrix (2011), "Roupa prateada" ganha em vigor e acento dramático. Talvez tomada pelas lembranças afetivas, Marya Bravo transmuta-se no sujeito cancional e este alça o vôo desejado e sugerido no texto da canção: "Eu só quero usar a roupa prateada e cantar pra vocês".
Mais do que descrever a cena, Marya Bravo dramatiza o discurso cancional do sujeito. Ou melhor, Bravo vive o sujeito. Letra, melodia e voz se conjugam para formar a teia cancional, a estrutura do percurso sonoro.
É no jogo entre o que o sujeito diz e os resíduos disso colados na pele da memória do ouvinte que a canção "Roupa prateada" trabalha. E para que a eficácia da canção ocorra a voz de Marya Bravo é o suporte mais do que certo para fazer a mensagem confessional dançar.

***

Roupa prateada
(Zé Rodrix)

Desde pequeno que eu tinha vontade de chegar aqui
E ficar na frente de uma banda como essa e cantar assim
E tudo o que eu fiz eu só fiz porque eu queria chegar no lugar onde estou
Pra poder usar as roupas prateadas e o cabelo comprido

Eu só preciso dizer pra vocês que eu não ofereço perigo
O que eu tenho pra lhes dizer é somente aquilo que eu digo
E o que eu preciso dizer pra vocês vai acabar ficando só entre nós
Vocês só vão entender quando chegar em casa muito tempo depois
E vocês vão voltar,
e vão escutar outra vez,
mas por enquanto eu só quero usar a roupa prateada e cantar pra vocês

12 janeiro 2012

Onde eu nasci passa um rio

A narradora-camareira do conto "Dona Sophia", de Marcelo Moutinho, escreve a partir (depois) do contato transformador que ela teve com Sophia de Mello Breyner Andresen. Designada para cuidar da estadia da escritora no hotel em que trabalhava em Manaus, a narradora (sujeito "comum", anônimo) primeiro conhece a mulher (o humano) e só depois, quando a hóspede vai embora, é que ela descobre a poeta. E isso tem muita importância.
"Uma senhora de cabelos cacheados e grisalhos, olhos claros, bem magra. Era dona Sophia. (...) Falava de uma forma estranha, na mesma língua que a gente fala, mas com um som diferente, sei lá. Tive que me segurar para não rir", descreve a narradora.
Publicado na antologia Escritores escritos, é guardado no livro A palavra ausente que o conto "Dona Sophia" produz mais sentido: abre-se a novas possibilidades de entradas. Aqui, fechando um livro que começa com um conto intitulado "Água", "Dona Sophia" traduz o lugar onde a zona de contato entre leitor (ouvinte) e escritor (cantor) se liquefaz, precede preconceitos e instrumentos teóricos.
Sophia de Mello Breyner Andresen revela-se muito próxima da camareira-narradora. A única diferença é que enquanto uma - Sophia (poeta: "como se ouvisse uma música que ninguém mais ouvia e que fazia o corpo mexer") - escreve motivada pelo canto da musa (a poesia), a outra - camareira (anônima - mulher "comum") - escreve motivada pela sereia (a poeta/escritora). "Falava de uma forma estranha, na mesma língua que a gente fala". Ambas irmãs na terra: ambas signos de elemento água em uníssono com a vida.
"Ela esperou alguns minutos até que eu terminasse com a cama e me agradeceu baixinho", observa a narradora. Sophia intervem na vida da camareira pela chave do lugar desta no mundo: o trabalho. "Era uma escritora famosa (...) ia receber um prêmio no Teatro Amazonas (...) o teatro é lindo. Nunca visitei, mas, se todo mundo diz, é porque é". A narradora não conhecia a hóspede, mas se o patrão diz que ela é importante é porque é.
O que poderia ser lido aqui como um discurso da resignação do subalterno, eu leio como uma potencialidade em movimento: "Eu devia dar toda a atenção para a Dona Sophia. Toda a atenção, entendeu?, e ele [o patrão] repetiu isso umas quatro ou cinco vezes. Já tinha entendido na primeira", anota para mais adiante dizer: "Apesar de a gente ser tão diferente (...) pareço muito com a dona Sophia (...) no ritmo secreto que só nós duas conhecemos".
Uma sereia de água doce (de rio): a camareira - que escreve depois de tocar (e ser tocada por) o mar. A outra sereia de água salgada (de mar). Cada uma em mundo e tempo frequenciais únicos, singulares. Como Guimarães Rosa, anotou, e sabemos: "O mundo do rio não é o mundo da ponte". É a travessia - de ambos - o que se insinua interessante.
Salvo as proporções dos meios, observo na camareira do conto de Marcelo Moutinho um gesto semelhante ao engendrado pelo sujeito da canção "Onde eu nasci passa um rio", de Caetano Veloso. Ambos sabem que "dentro do mar tem rio, dentro da dor a canção, dentro do guerreiro flor", como canta o sujeito de outra canção.
Porém, mesmo desaguados no mar, preservam a força criadora e genésica que o rio (doce, menor, mais íntimo que a imensidão salgada marinha) serpenteia na estrutura - humana e estética - de cada um. "O que eu herdei de minha gente e nunca posso perder", parecem dizer nas entrelinhas.
Regravada pela médium das sereias - Maria Bethânia - no disco Pirata (2006), "Onde eu nasci passa um rio" registra o sujeito que canta a partir do canto: "Nasceu junto com o rio / o canto que eu canto mais", diz. Cantado, ele canta - experimenta a saída-de-si.
Sempre passando ("passa no igual sem fim"), atravessando, nunca o mesmo, o rio é o motor da luz na vida do sujeito da canção e da narradora do conto. O rio intervem na vida do sujeito da canção: "O rio da minha terra / Deságua em meu coração". Assim como intervem na vida da camareira: "No rio já entrei. Com o rio eu vivo desde bem menina".
Há uma promoção concentrada de conhecimento: "Nunca tinha visto uma escritora antes. Muito menos premiada". Enriquecimento: "Igual, sem fim, minha terra / Passava dentro de mim". E o saldo cognitivo é digno de notas. "Hoje eu sei que o mundo é grande", diz o sujeito da canção. "Antes, o rio para mim era só rio, às vezes fundo, às vezes raso, às vezes limpo, às vezes sujo, mas só ele mesmo, o rio".
O rio - berço e memória - do sujeito da canção deságua, "como se não desaguasse", no mar. "Já tanta coisa aprendi / Mas o que é mais meu cantar / É isso que eu canto aqui", diz. Dito de outro modo, sujeito e narradora mudam para permanecer os mesmos: eterno retorno (em diferença) íntimo.
"O tempo voa mais do que a canção", diria outro sujeito cancional. No conto e na canção arte e vida se tocam de forma complexa e delicada, apontando o que elas são e em que se diferem. "Mesma língua, mas com um som diferente". "O rio só chega no mar / depois de andar pelo chão".
"Eu fiquei pensando como seria se a gente de repente virasse água no meio de tanta água", desaguasse no mar, anota a camareira depois de ler o livro deixado por Sophia. Seja como for, enquanto duram, conto (canto) e canção singularizam narradora e sujeito no mundo. Ambos querendo permanecer presença no leitor/ouvinte, mesmo depois de fechado o livro e de finda a canção.

***

Onde eu nasci passa um rio
(Caetano Veloso)

Onde eu nasci passa um rio
Que passa no igual sem fim
Igual, sem fim, minha terra
Passava dentro de mim

Passava como se o tempo
Nada pudesse mudar
Passava como se o rio
Não desaguasse no mar

O rio deságua no mar
Já tanta coisa aprendi
Mas o que é mais meu cantar
É isso que eu canto aqui

Hoje eu sei que o mundo é grande
E o mar de ondas se faz
Mas nasceu junto com o rio
O canto que eu canto mais

O rio só chega no mar
Depois de andar pelo chão
O rio da minha terra
Deságua em meu coração

05 janeiro 2012

Canto praieiro

Depois de uma serena e breve introdução instrumental - com o mesmo andamento rítmico que acompanhará a canção até o final - entra em cena a voz de Dori Caymmi entoando com timbres passionais "Canto praieiro", de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro (Poesia musicada, 2011).
A princípio, a canção fala de dois corações - do sujeito-cantor (pescador, praieiro) e de Maria - unidos pelo mar e sua sugestão de eternidade. Desde a introdução, com o uso do violoncelo - instrumento cujo som mais se assemelha à voz humana - há significantes que levam o ouvinte a crer que Maria, o amor do pescador, pode ser, além do bem-de-terra (aquela que chora quando o sujeito sai), também o bem-do-mar: Yemanjá.
"Fiz meu canto praieiro pro mar cantar pra Maria", diz o sujeito. Como sabemos, a semiótica da palavra "Maria", sincretizada à mitologia mariana cristã, é um dos nomes de Yemanjá - um dos orixás mais populares do Brasil, mesmo entre aqueles que não seguem as religiões afrodescendentes. Além de Dandalunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá, Inaê, Sereia, Mucunã.
Desde modo, o canto praieiro é o canto-de-retorno do sujeito à sereia rainha do mar. Humano, o sujeito cria os elementos necessários para que o próprio mar (berço do amor) retribua Maria. Tendo em vista que "é com o povo que é praieiro / que dona Yemanjá quer se casar", como diz outra canção.
Retomo à importância da presença do violoncelo, pois parece ser movido (acalentado) por este som - "não era canto de gente / bonito de admirar", como diria o sujeito de "Caminhos do mar" - que o sujeito de "Canto praieiro" constrói sua declaração amorosa. O violoncelo representa o canto sirênico (não humano, mas assemelhado a esse) que dialoga com a voz (humana) do sujeito, de Dori.
Dito de outro modo, há um diálogo erótico-cancional que move e atravessa toda a canção, iconizado pelo embaralhamento (sobre e justaposição) de alguns versos: reiteração em diferença. O que, tanto representa os dois corações (esculpidos em uma palmeira do chão da praia) em enlace, como aponta as notas (vocais e do violão) carregadas pelo vento ao mar que, a pedido (cúmplice) do sujeito, canta Maria. É nesse rearranjo de significantes (versos e melodias marinhas) que o sujeito em estado contemplativo encena a ponte de voz-dupla entre ele e a musa, a sereia: Maria.
Importa apontar que no mesmo disco - Poesia musicada - há uma canção intitulada "Dona Yemanjá". "Vi que um clarão me alumbrava / do olho se encadear / Vinha da ponta de pedra / que aflorava do mar / era uma moça encantada / (...) Correu um gelo na espinha / bateu espanto no olhar / (...) / senti meu peito afundando / dentro da arrebentação / e ela virando a rainha / do mar do meu coração", diz o sujeito. Como percebe-se, as duas canções guardam signos muito próximos, diante do inferno (medo) e céu (vontade) do indivíduo em epifania mística-amorosa.
Há uma devoção e uma delicadeza melancólicas comoventes no modo como este sujeito é figurativizado na voz de Dori. Denso, aprofundando-se na entrega-de-si, o sujeito de "Canto praieiro", de viés, elege-se e se canta ao cantar seu par no mundo, ao tecer sua poética sustentadora do amor.
"Poesia é estrela arisca / tem que ter muito namoro / tem que ser diamante a isca / posta num anzol de ouro / (...) / Poesia é peixe não / mas se pesca de canoa / na maré do coração", dirá outra canção - "Estrela verde" - do mesmo disco, ampliando as noções teóricas daquilo que separa poesia e gesto poético, trama poemática da existência, produção de presença, impressão descritiva.
"A palavra cantada / não é a palavra falada / nem a palavra escrita / a altura a intensidade a duração a posição / da palavra no espaço musical / a voz e o modo mudam tudo / a palavra-canto é outra coisa", comenta Augusto de Campos, ensaiando sobre Torquato Neto. Em "Canto praieiro", o organismo inseparável da canção (palavra, som e voz) está representado, desenhado nos elementos sofisticados, porque primitivos - violão e maresia, areia e coqueiro, sujeito e Maria -, que compõem o lugar onde a canção se encarna: a ca(rna)n(a)ção do afeto.
É assim que, Yemanjá, prescindindo à formação da individuação, é a amante-companheira perfeita no mergulho para dentro-de-si - dentro do eterno verde - do indivíduo praieiro alumbrado com sua própria imagem (interioridade, potencialidades) refletida no espelho (canto) sempre na mão (na voz) da sereia.
O sujeito de "Canto praieiro" é alegre na monocordia do cotidiano trágico. Afinal, "foi com pincel de relento / e tinta de maresia / que a mão do meu pensamento / no chão da praia vazia / riscou um verso de vento / pro mar levar pra Maria", como anota o sujeito. E o que se ouve nessa canção é exatamente a toada sempre grave, na voz de Dori Caymmi.

***

Canto praieiro
(Dori Caymmi / Paulo César Pinheiro)

Foi com pincel de relento
e tinta de maresia
que a mão do meu pensamento
no chão da praia vazia
riscou um verso de vento
pro mar levar pra Maria

Foi com violão de coqueiro
e cordas de ventania
que com meu dom de violeiro
e ao som da onda vadia
eu fiz meu canto praieiro
pro mar cantar pra Maria

Foi com clarão de poesia
que eu esculpi de paixão
com a ponta da estrela guia
numa palmeira do chão
o coração de Maria
junto com meu coração