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28 junho 2012

O doce mistério da vida

No conjunto monumental Convento de Santo Antonio e Igreja de São Francisco na capital da Paraíba, cidade desenvolvida entre o rio e o mar, sereias ornam os altares da capela dourada do Santíssimo Sacramento. Como Luiz da Câmara Cascudo as descreveu no artigo "As sereias na casa de Deus" na edição de 5 de abril de 1952 de O Cruzeiro: "cabeleira em concha, o cinto venusino abaixo dos seios, uma volta de flores na altura do ventre e o longo corpo ictiforme volteando como ornamento e moldura". 
Cada elemento mereceria uma análise profunda e séria. Para o pesquisador que viu sereias em outros templos cristãos, "as sereias paraibanas são diferentes. Mão direita à cinta, elegantemente, e a sinistra fingindo suster o rebordo trabalhado em relevo da cornija. Nem peixes e nem duas caudas. Vi as Sereias de Travanca, esculpidas na pedra, segurando a cauda e também um peixe".
No artigo citado, Cascudo rejeita a égide sedutora em prol do símbolo funerário que as sereias guardam para analisar as sereias paraibanas e justificar a presença delas ali. Ele percorre três séculos antes da igreja de Cristo buscando explicar a relação da sereia com a morte, em um tempo em que elas ainda eram seres alados e barbados. Como sabemos, o rabo de peixe e a beleza física surgem na releitura do mito e da lenda, principalmente, pela igreja católica.
O fato é que a beleza calcada em elementos clássicos, aliada à morte, reforça a inibição das potencialidades essencialmente vocais que tais seres tinham. Ou seja, a sereia bela fisicamente é símbolo da ideologia que tem na mulher a perdição do homem. A ênfase na visão, no corpo bonito e harmonioso, em detrimento da voz, impõe a ordem de calar as mulheres que cantam: belas por fora e terríveis por dentro.
A voz de alguém cantando indica que há um indivíduo de carne e osso existindo. É esta unicidade o que assusta. Ter voz é ser um existente. Não falo da voz metafórica, mas da voz que sai da garganta de um encarnado. Entra aqui o método do falar, ao invés do método do pensar tão defendido pela filosofia canônica. O falar está no tempo da ação, enquanto que o pensar quer estar fora, através das conexões que colocam os objetos em um "presente eterno".
Voltando às sereias, Cascudo destaca e reforça que elas estão também em outras igrejas católicas, apesar de desconhecer a presença delas em capelas ou matrizes brasileiras, além das paraibanas. Porém, tenho a notícia de que elas estão na entrada da Igreja de São Pedro, em Recife-PE. De todo modo, não chegam a entrar na casa de Cristo.
Para Cascudo, as sereias paraibanas serviriam como exemplo da ornamentação povoada de assombros da Idade Média. Elas se aliariam às figuras do Velho e Novo Testamento para incutir o temor aos fiéis que ousassem se deixar seduzir pelas belezas do mundo, esquecendo Deus: causa primeira e destino de tudo. E aqui a beleza externa seria a armadilha perfeita armada pela sereia fatal, já que ela "perdeu" a voz que as caracterizavam com um vocálico ainda não dócil, domesticado, humanizado e "elevado".
Sem querer oferecer credencial desculpadora às sereias por força de seu simbolismo funerário, penso que sua presença na casa cristã quer dizer mais: quer falar do hibridismo, do sincretismo e, sim, do erotismo estético que caracteriza a mobilidade cultural. Mesmo "amansadas" pela Igreja, as sereias se impõem como presença, indicam que há algo além daquilo que está sendo oferecido. Diferente da Musa cuja voz só é audível ao poeta, a Sereia toca a sensibilidade auditiva do homem comum.
Se os costumes do mito foram modificados, serenados, as sereias paraibanas mostram que o mito resistiu como potência aos exorcismos. Aliás, porém, Cascudo destaca que "os templos olímpicos receberam a presença dos santos (...) Numa carta famosa, o Papa Gregório Magno mandou conservar os templos e retirar os ídolos", atitude não muito diferente do empreendido pelas igrejas neopentecostais que ocupam teatros e cinemas na tentativa de catequese e de expansão do domínio. As consequências disso? Só o tempo dirá.
No entanto, como o próprio pesquisador observa, "ninguém intimou a Sereia a desenrolar a cauda e remergulhar no Rio Paraíba, caminho de Cabedelo, ganhando o Atlântico. As Sereias ficaram. Ficaram na sua forma pós-clássica de semi peixe porque as verdadeiras eram semi-aves. Com asas é que elas cantaram para tentar Ulisses que tapou com cera os ouvidos insensíveis ao canto mágico". Note-se que esta interpretação que Cascudo oferece para Ulisses reforça, de viés, os argumentos de Adorno para a passagem do "Canto das sereias", de Homero.
Seja como for, as sereias estão sim no culto dos mortos. Acreditava-se que elas intermediavam pelo morto junto aos deuses do inferno helênico, por exemplo. Isso explicaria a presença vocacional e clássica das sereias da Igreja de São Francisco de 1779. Mas o escultor sabia de tais simbologias? Ele driblou as censuras da época? Pergunta-se Cascudo.
Por minha vez, pergunto-me: Com seu canto grávido de sugestões para que nos tornemos o que somos, para além do sofrimento e da vulnerabilidade impostos pela culpa, as sereias, mesmo quando parecem convidar à morte não estão convidando à vida? Híbridas, não são elas sempre fúnebres e eróticas?
Não falo de metafísica. Creio que as sereias paraibanas nos dizem que ser humano implica em assumir a pluralidade e o risco da experiência dos impulsos: a potencialização das potências, o eterno retorno. As sereias na casa cristã dizem que o indivíduo não é independente de outros corpos, nem da história pulsional e cultural constitutiva daquilo que ele é hoje. Elas cantam que é preciso que cada um viva a vida e pague o preço por vivê-la. "O mito é o nada que é tudo", afirmam.
"A satisfação mais manifesta, que o canto das sereias promete, seria o ingresso do corpo indiferenciado - como corpo de uma simultaneidade de todas as funções ativas e passivas - na indiferenciação da vida", escreve David E. Welberry no texto "O processo de dissimulação: 'O silêncio das sereias', de Kafka" (ver livro Mímesis e a reflexão contemporânea, org. Luiz Costa Lima).
Perder-se. Eis o infinito sirênico. Perder-se entre os detalhes da fauna e da flora tropicais e dos frutos regionais que inspiraram os artistas a decorar a jóia barroca paraibana com cajus, abacaxis e sereias. O eu é uma ilusão, tudo é multiplicidade e as sereias na casa de Cristo afirmam isso. As sereias se utilizam de um mesmo significante para dar conta de significados diferentes. O canto das sereias mobiliza mais de um afeto, encandeia a interligação de tudo, faz o ouvinte amar o destino ao abrir possibilidades de futuro. Perder-se.
Intervenção semelhante é feita por Maria Bethânia quando canta para Maria, mãe de Jesus, no disco Cânticos Preces Súplicas (2003). Médium das sereias - "A voz mora em mim, mas não é minha. É das sereias". -, Bethânia condensa na voz os signos de Maria e de Iemanjá. Bethânia "Deusa d'água / Iemanjá de cacimba / Iansã Iara minha irmã /Curuminha cunhatã", como escreve Chico César em "Águia".
"Vive sempre conversando à sós comigo / Uma voz que eu escuto com fervor / Escolheu meu coração pra seu abrigo / E dele fez um roseiral em flor", canta enquanto interpreta "O doce mistério da vida", de Victor Herbert na versão de Alberto Ribeiro para "Ah! Sweet Mystery of life". Voz das sereias escutada com fervor e em estado de refração, via voz da cantora, na casa cristã: sereia no terreno mariano.
Importa destacar que a canção surge logo depois da intérprete cantar "O doce mistério de Maria", de Fauzi Arap. E esta justaposição vida-Maria não pode passar despercebida de seu engenho estético. "Sou santamarense e sei bem dessa maneira ímpar de adorar, reverenciar, louvar Nossa Senhora com uma intimidade nossa. A alegria, para mim, é a maneira mais adequada para louvar Nossa Senhora", anota Bethânia no encarte do disco. Encarte-objeto, posto que pode ser folheado, apreciado como um rosário e suas contas, esferas vazadas.
"O doce mistério da vida" já mereceu de Bethânia gravações anteriores, desde o antológico Rosa dos ventos (1971). E cada uma das versões merece uma avaliação que as singularizam frente às demais canções de cada disco. Aqui, é a voz misteriosa que engendra cantos o que se destaca: é a vida que "parece muito calma", mas que "tem segredos que eu não posso revelar". Aqui também, diferente das outras versões, Bethânia revela o segredo, diz quem é o seu amor: Maria.
Maria e Iemanjá, a grande sereia, figuras arquetípicas do feminino maternal, imbricam-se no canto de Bethânia, do mesmo modo que as sereias paraibanas sincretizam com os santos católicos. O resultado desse sincretismo entre Iemanjá e Maria é uma terceira entidade ainda sem nome, tropical, brasileira, pós-tensão. Contra-tradição? Trans-canção? Re-silêncio? As sereias paraibanas e Maria Bethânia colocam Iemanjá no céu dos cristãos e Maria no terreiro afro, no mar imenso sem cais. Elas infringem a linearidade e as regras de sobreposições hierárquicas. Que se complexifique a tradição filosófica!
"A rainha do mar anda de mãos dadas comigo / Me ensina o baile das ondas e canta, canta, canta pra mim", diz Bethânia em "Carta de amor". Bethânia descola tanto Iemanjá quanto Maria de seus territórios específicos da religião que cada uma representa e as oferece à estética, à arte: aqui, uma e outra é de todos e de ninguém, Maria não é mais (apenas) da Igreja, nem Iemanjá é mais (apenas) do terreiro. Ambas mãe - mãe d'água e mãe do céu - chamando os filhos à experimentação da vida, via mistura, hibridação e sincretismo.
A título de referência, este projeto de brasilidade, de promoção da intimidade e tensão entre elementos diferentes, mas complementares, pode ser identificado também quando Bethânia abre o disco Mar de Sophia, inspirado na obra da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, com o "Canto de Oxum".
As sereias paraibanas e Maria Bethânia restituem a sensibilidade da singularização do dono da voz que canta. Elas não sabem o que são, estão no meio, na travessia, na experiência das misturas, dos encontros desimpedidos de proibições morais e religiosas. Cambiantes, moventes, elas são algo novo, o centro motor da possibilidade que temos da invenção de sermos o que somos.
É deste modo, através desta chave de interpretação, que as sereias paraibanas, mesmo mal conservadas, gastas pelo tempo e pelo descaso, banhadas pelo sol tropical que ilumina e translúcida em poeira de estrelas seus detalhes em ouro, deixam de ser exóticas, excêntricas, para ser um signo do segredo da cultura brasileira. 

*** 
O doce mistério da vida 
(Victor Herbert - Versão: Alberto Ribeiro)

Minha vida que parece muito calma
Tem segredos que eu não posso revelar
Escondidos bem no fundo de minh'alma
Não transparecem nem sequer em um olhar
Vive sempre conversando à sós comigo
Uma voz que eu escuto com fervor
Escolheu meu coração pra seu abrigo
E dele fez um roseiral em flor

21 junho 2012

Foguete

O sujeito de "Foguete", de Roque Ferreira e Jota Veloso, canta a excitação de viver o amor. O grande amor. Entre o que pode e o que não pode ser, ele enfeita a vida e a canção que entoa com elementos típicos de seu universo brejeiro, sertanejo, interiorano.
Ele canta delicadezas pouco comuns ao urbano, mas naturais ao estado-de-espírito festivo e trágico do indivíduo que aguarda o ano inteiro pela festa da colheita, da fartura. E na busca de enfeites para as sensações que lhe toma por dentro, o sujeito usa o nome João Cabral de Melo Neto - poeta que não gostava de música - dentro da canção e, como se não bastasse, rima o nome do poeta com "afeto".
Obviamente, creio que o sujeito faz isso a fim de tematizar a incompatibilidade de gênios - ficar no canto calado versus a barulheira da saudade - entre ele e o outro, que chega inesperadamente: "Tantas vezes eu soltei foguete / Imaginando que você já vinha (...) "Você chegou no amiudar do dia / Eu nunca mais senti tanta alegria / Se eu soubesse...".
Ora, educado pela pedra-dureza do dia-a-dia de estio, o sujeito prepara a casa tal e qual a alma para receber o estrangeiro: o amor. "Tirei a renda da naftalina / Forrei cama, cobri mesa / E fiz uma cortina / Varri a casa com vassoura fina / Armei a rede na varanda / Enfeitada com bonina", maravilhas, boas-noites. Gestos e costumes típicos que o interiorano faz com capricho para homenagear alguém importante que está para chegar. Ou quando é festa, no caso, São João, e a casa precisa estar pronta para as confraternizações.
Mas a beleza da letra da canção é recolhida nos derradeiros versos: "Nosso amor é tão bonito e tão sincero / Feito festa de São João". Só quem já viveu a festa do milho verde - São João Cabral de Melo Neto? Trágico e sublime, triste e alegre, pele enrugada do sol claudicante e o sorriso largo carregado de fé - no interior nordestino pode alcançar o que o sujeito quer dizer quando fala de sinceridade e beleza no mesmo verso que adjetiva a grande festa.
E como não reconhecer tais lindezas no gesto vocal de Mariene de Castro, que registrou a canção no disco Tabaroinha (2012)? Mariene transmite a impressão não apenas da interpretação, mas da vivência, daquilo que ela canta. Entre as tantas potentes canções do disco, "Foguete", com sua melodia arrasta pé e chamego, imprime a simplicidade complexa do movimento existencial de um povo.
Mariene de Castro condensa na voz e no jeito de corpo voz a brisa que veio feito cana mole, doce, roubando um beijo, flor de querer bem. As inflexões vocais alegres de Mariene figurativizam o sujeito do interior que sabe que um beijo vale pelo que contem, afeito às belezas simples, sem ambição alguma, além da mesa farta e da rede no alpendre.
O amor do sujeito de "Foguete" é gestado na barulheira da saudade, no silêncio, nas lembranças do que não se viveu e nas recordações dos momentos (possivelmente) passados juntos. Há sim uma saudade do amor que não se teve, de um outro que se sente. E é essa convivência de opostos que marca o homem do interior que tem na festa da chuva um momento de puro amor.
Mas precisamos comentar ainda alguns versos. Em "Se eu soubesse soltava foguete / Acendia uma fogueira / E enchia o céu de balão" flagramos a melancolia do brincante das festas de outrora e que ecoa o sujeito de "Estrela azul do céu", de Gilberto Gil: "Aquela estrela azul do céu / Do céu do meu balão / De antigamente / Sumiu de repente / Da noite de São João / (...) / Balão era isso / Magia, feitiço / Milagre que não tem mais", com a criminalização da prática.
Vale lembrar também "Noites brasileiras", de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, eternizada na voz de Gonzagão: "Ai que saudades que eu sinto / Das noites de São João / Das noites tão brasileiras na fogueira / Sob o luar do sertão // Meninos brincando de roda / Velhos soltando balão / Moços em volta à fogueira / Brincando com o coração / Eita, São João dos meus sonhos / Eita, saudoso sertão".
Ou seja, o cenário externo de "Foguete" é construído com o objetivo de espelhar, ecoar o cenário interno, íntimo do sujeito que canta. Mas como sabemos, assim como os foguetes - ainda presentes em algumas cidades do interior, com as guerras de rojão - as fogueiras e os balões são cada vez mais raros como signos concretos de embelezamento da festa.
Outro momento que merece destaque é a presença de acauã: "Senti na pele a mão do seu afeto / Quando escutei o canto de acauã". Como sabemos, a ave costuma cantar ao entardecer e/ou ao amanhecer, entoando um grito longo e alto que cobre os demais sons locais. Portadora de bons (chegada) e/ou maus (morte) agouros, na canção, acauã anuncia a felicidade e sustenta, no canto, a fé do sujeito que canta.
Coube a Zé Dantas estetizar acauã: "Acauã, acauã vive cantando / Durante o tempo do verão / No silêncio das tardes agourando / Chamando a seca pro sertão / Acauã, acauã / Teu canto é penoso e faz medo / Te cala, acauã / Que é pra chuva voltar cedo (...) Na alegria do inverno / Canta sapo, jia e rã / Mas na tristeza da seca / Só se ouve acauã". Cabe lembrar a gravação singularíssima que Gal Costa deu à canção no disco Legal (1970).
O canto de acauã é destituído de signos verbais, mas contém significados intrínsecos à cultura popular, ao folclore. Na canção, ele se liga ao galo para tecer a manhã de um novo amor, de um amor que sempre esteve, mas que só agora - chegado no amiudar do dia - se realiza para além da subjetividade do sujeito da canção, se concretiza promotor de mudanças.
Mauriene de Castro mimetiza a acauã portadora de bons agouros, ressoa o convite matinal do galo, abre, com sua voz terna, portas para o apelo espiritual do sujeito e do indivíduo que vivem a festa de puro amor: o São João.


***

Foguete
(Roque Ferreira / Jota Veloso)

Tantas vezes eu soltei foguete
Imaginando que você já vinha
Ficava cá no meu canto calada
Ouvindo a barulheira
Que a saudade tinha

É como disse João Cabral de Mello Neto
Um galo sozinho não tece uma manhã
Senti na pele a mão do seu afeto
Quando escutei o canto de acauã

A brisa veio feito cana mole
Doce, me roubou um beijo
Flor de querer bem
Tanta lembrança este carinho trouxe
Um beijo vale pelo que contém

Tantas vezes eu soltei foguete
Imaginando que você já vinha
Ficava cá no meu canto calada
Ouvindo a barulheira
Que a saudade tinha

Tirei a renda da naftalina
Forrei cama, cobri mesa
E fiz uma cortina
Varri a casa com vassoura fina
Armei a rede na varanda
Enfeitada com bonina

Você chegou no amiudar do dia
Eu nunca mais senti tanta alegria
Se eu soubesse soltava foguete
Acendia uma fogueira
E enchia o céu de balão
Nosso amor é tão bonito e tão sincero
Feito festa de São João