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21 março 2013

Minha missão



No livro A hora da estrela, de Clarice Lispector, lemos: “Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. (...) Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente – é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade” (1998, p. 11-12).
Como sabemos, Macabéa e o narrador do livro são movidos por semelhante energia dolorosa: o estranhamento – Macabéa diante da cidade “toda feita contra ela”; e o narrador diante do ato mesmo de narrar. A dor vem do conflito entre a vontade e as dificuldades de vida. Porém, “choque entre o azul e o cacho de acácias”, como cantaria Caetano Veloso, a dor entre o pensar e o sentir, “contato interior inexplicável”, pode mobilizar e impulsionar a criação. E não é transformar “lágrima em canção”, como canta Zeca Baleiro, a “dor que deveras sente”, que o artista vive? E, noutro plano de interpretação, não é na permanente e necessária transvaloração dos valores que vive o humano?
“Minha missão”, de Paulo César Pinheiro e João Nogueira, trata da criação e resignificação da vida pela canção, pelo canto, no cantar. O sujeito canta a própria dor que carrega “o mundo e há falta de felicidade”: “Quando eu canto / É para aliviar meu pranto / E o pranto de quem já / Tanto sofreu”, entoa Mariene de Castro (Ser de luz - uma homenagem a Clara Nunes, 2013). O cantar é apresentado, então, como uma garrafada de ervas maceradas – cantar cura.
“Sei que quando eu morrer vou ouvir o violino do homem e pedirei música, música, música” (p. 82), anota o narrador de A hora da estrela, no momento de descrição da agonia de Macabéa após o atropelamento. “Macabéa, Ave Maria, cheia de graça, terra serena da promissão, terra do perdão, tem que chegar o tempo, ora pro nóbis, e eu me uso como forma de conhecimento. Eu te conheço até o osso por intermédio de uma encantação que vem de mim para ti. Espraiar-se selvagemente e no entanto atrás de tudo pulsa uma geometria inflexível. Macabéa lembrou-se do cais do porto. O cais chegava ao coração de sua vida” (idem), registra o narrador em gesto de espelhamento com a personagem. Narrar Macabéa faz o narrador-autor ser mais ele próprio. “Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus”, escreve (p. 24). Ou, como Mário de Andrade escreveu espantado no poema “Descobrimento”: “Esse homem é brasileiro que nem eu”.
 “Canto para anunciar o dia / Canto para amenizar a noite / Canto pra denunciar o açoite / Canto também contra a tirania / Canto porque numa melodia / Acendo no coração do povo / A esperança de um mundo novo / E a luta para se viver em paz”, canta Mariene de Castro com a melancólica vitalidade de quem vivencia as dores do sujeito da canção. Dor que rima com entrega lúcida à vida. Dor consciente dos prazeres e dos infortúnios de viver. Tudo isso gira na voz quente e épica de Mariene de Castro.
Assim como há exemplificação de “gaia ciência” no trecho do livro quando anuncia que “Esse não-saber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo. Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um dia como se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes” (Lispector, p. 29), também na canção “Minha missão” o sujeito sugere amor ao destino: “Do poder da criação / Sou continuação / E quero agradecer / Foi ouvida minha súplica / Mensageiro sou da música / O meu canto é uma missão / Tem força de oração / E eu cumpro o meu dever / Aos que vivem a chorar / Eu vivo pra cantar / E canto pra viver”.
Estas determinações, nada deterministas, ao contrário, tomadas mesmo como signos do viver, engendram o fazer cancional, por movimentar, organizar e re-apresentar sabedorias coletivas e comuns inerentes ao humano. “Quando eu canto, a morte me percorre / E eu solto um canto da garganta / Que a cigarra quando canta morre / E a madeira quando morre, canta”, diz Clara Nunes. Cantar é, portanto, interferir da dicotomia vida e morte.
“O meu canto é a minha solidão / É a minha salvação”, canta Cazuza. Macabéa “era calada (por não ter o que dizer) mas gostava de ruídos. Eram vida. Enquanto o silêncio da noite assustava: parecia que estava prestes a dizer uma palavra fatal” (p. 33), anota o narrador. São destes materiais – solidão , silêncio, ruídos, fatalidades – que as canções são feitas. A fim de proporcionar salvação, que aqui interpreto como o re-ajustar do ser no mundo.
Por sua vez, escrevendo sobre os parentescos entre música e o horror da guerra, Pascal Quignard, em Ódio à música, observa: “A música foi a única, entre todas as artes, que colaborou com o extermínio dos judeus organizado pelos alemães de 1933 a 1945. Ela foi a única arte que foi requisitada como tal pela administração dos Konzentrationslager. É preciso sublinhar, em detrimento dessa arte, que ela foi a única arte que pôde se arranjar com a organização dos campos, da fome, do despojamento, do trabalho, da dor, da humilhação e da morte” (1999, p. 119). Como não reconhecer aqui o instante logo após o atropelamento de Macabéa? Como não ouvir mea culpa do sujeito de “Minha missão” que diz: “Quando eu canto / É para aliviar meu pranto / E o pranto de quem já / Tanto sofreu / Quando eu canto / Estou sentindo a luz de um santo / Estou ajoelhando / Aos pés de Deus”?
Ao contrário do que aconteceu a Macabéa, Quignard rechaça a música como consolo e ensaia um “desencantar”, um “subtrair ao poder do canto” (p. 152). Para o autor, “amplificada de uma maneira subitamente infinita pela invenção da eletricidade e pela multiplicação de sua tecnologia, [a música] se tornou incessante, agredindo tanto de dia como de noite” (p. 120) agravando memórias e sentimentos dos ouvintes na iminência da morte. “A música atrai para si os corpos humanos. É ainda a sereia no conto de Homero. (...) A música é uma isca que agarra as almas e as leva à morte" (idem).
Para além do “bem” e do “mal” que a música possa causar, penso que está o humano e sua capacidade de usos. É Quignard mesmo quem lembra que “é o canto do galo que faz são Pedro subitamente explodir em soluços” (p. 125). Canção é avivamento dos sentidos. E “os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona”, anota o narrador de A hora da estrela (1998, p. 24).
É o nosso instinto caraíba que leva-nos a fazer da canção popular uma extensão da gaia ciência onde o indivíduo de reconhece coletivamente brasileiro. Sem ter a pretensão de defender teses, ou seja, sem provar objetivamente aquilo que tematiza, mas por estar em sintonia com as urgências do humano, a canção popular no Brasil, através do “modo de dizer” de seus cancionistas (missionários), mobilizando não apenas o intelecto, mas outras faculdades e sentidos, contém filosofia; parecem ser o espaço onde o Brasil ensaia – onde Macabéas e seus narradores-autores se forjam.
Pelo prazer, e aqui sim podemos identificar o encanto, a isca, a canção popular no Brasil redimensiona dúvidas, ajuda o ouvinte a entender questões internas. Quantas vezes re-ouvimos uma canção a fim de reposicionar uma memória, um sentimento? Assim como aconteceu com o narrador de Macabéa e a personagem, no canto coletivo de uma canção como “Minha missão” suspendemos temporariamente a individuação, posto que reconhecemos as conexões que nos une. Em outras palavras, porque feita na in-certeza, a canção solapa a dor, a finitude e a transitoriedade.
Quignard parece movido pelas mesmas impressões que horrorizaram Adorno e Benjamin, ao escrever que: “A música multiplicada ao infinito, como a pintura reproduzida em livros, revistas, cartões-postais, filmes, CD-ROM, arrancaram-se de sua unicidade. Tendo sido arrancados à sua unicidade, foram arrancados à sua realidade. Isto feito, eles se despojaram de sua verdade. A multiplicação lhes tirou de sua aparição. Tirando-os de sua aparição, ela os tirou de seu fascínio original, de sua beleza” (p. 153).
Adorno, Benjamin e Quignard escrevem preocupados, entre outras questões, com a ação do capitalismo sobre a cultura. Assim como Mário de Andrade e Ariano Suassuna e seus projetos de Brasil. Importa a estes pensadores o impacto do mercado nas “fontes” de saber popular. E aqui cabe destacar que segundo Rodrigo Duarte, no livro Teoria crítica da indústria cultural, “no Brasil, ainda podemos, felizmente, diferenciar – pelo menos em termos parciais – a cultura popular mais enraizada, daquela totalmente fabricada para o consumo, ainda que tenha raízes supostamente popular” (2003, p. 192). Diferente da indistinção norte-americana entre “música de massa” e “música popular”, o que reforça a crítica dialética em Adorno.
Outrossim, por exemplo, temos no Brasil as chamadas “canções de protesto”, canções que tematizam nas letras, melodias e/ou gestualidades vocoperformáticas dos cancionistas a crítica à ideologia hegemônica. O que também diferencia a nossa realidade do corpus analisado por Adorno. Definir o que é “folclore”, “tradição”, “autenticidade”, “popular”, “de raíz”, “original”, no Brasil, requer amplitude teórico-prática sobre os efeitos culturais e políticos da canção.
Penso que acreditar que apenas a tradição, como se esta não dependesse da traição a si mesma – da inovação – para se reinventar e permanecer como tal (tradição), contém o núcleo luminoso da identidade nacional, é deixar de entender para que se canta: “para anunciar o dia / para amenizar a noite / pra denunciar o açoite / também contra a tirania”. E as mídias de reprodução têm servido de aliadas da preservação e da afirmação de identidades e culturas, ao revelar e disseminar continuamente o tupi e o alaúde, mitos e essências de brasilidades. “Quando eu canto / Estou sentindo a luz de um santo / Estou ajoelhando / Aos pés de Deus”, canta Mariene.
O cancionista – a neo-sereia, porque midiatizada – é o médium, a mediação orgânica, das sereias, musas, dos santos, orixás, mitos em complexo signo de rotação, no Brasil. Mariene de Castro apresenta uma voz de timbração forte, de mulher guerreira, sensual e nossa, brasileira, entre a sala e o terreiro, quente. A dicção está cheia de vigor e na própria entoação verificamos uma afirmativa “certeza da beleza” repleta de fulgor e encanto. A vida pulsa aqui, na voz de quem sabe para que canta: para remelexer a estrutura do nosso instinto caraíba.

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 Minha missão
(Paulo César Pinheiro / João Nogueira)

Quando eu canto
É para aliviar meu pranto
E o pranto de quem já
Tanto sofreu
Quando eu canto
Estou sentindo a luz de um santo
Estou ajoelhando
Aos pés de Deus
Canto para anunciar o dia
Canto para amenizar a noite
Canto pra denunciar o açoite
Canto também contra a tirania
Canto porque numa melodia
Acendo no coração do povo
A esperança de um mundo novo
E a luta para se viver em paz

Do poder da criação
Sou continuação
E quero agradecer
Foi ouvida minha súplica
Mensageiro sou da música
O meu canto é uma missão
Tem força de oração
E eu cumpro o meu dever
Aos que vivem a chorar
Eu vivo pra cantar
E canto pra viver

08 março 2013

Não tenho medo da vida

"Na unicidade que se faz ouvir como voz, é um existente encarnado - ou, preferindo-se, um 'ser-aí' na sua radical finitude - que se faz ouvir aqui e agora. A esfera do vocálico envolve o plano da ontologia e o vincula à existência de seres singulares que se invocam mutuamente em um dado contexto. Desde a cena materna, a voz manifesta o ser único de cada ser humano e o seu espontâneo comunicar-se segundo os ritmos de uma relação sonora. Nesse sentido, o horizonte descortinado pela voz, ou seja, aquilo que queremos chamar de ontologia vocálica da unicidade opõe-se peremptoriamente às várias ontologias dos entes fictícios que a tradição filosófica, ao logo de seu desenvolvimento histórico, nomeia a cada vez como 'homem', 'sujeito', 'indivíduo'", anota Adriana Cavarero em Vozes plurais - Filosofia da expressão vocal (2011, p. 202).
"A vida é somente um dom independente de quem / Seja capaz de gritar seu nome, alto e bom som / A vida seria um tom, uma altura a se atingir / Viver é saber subir, alcançar a nota lá / Lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar", canta Gilberto Gil ("Não tenho medo da vida", Fé na festa, 2010). Os versos de Gil exemplificam as palavras de Cavarero. Ou seja, independente do indivíduo, a vida existe, mas o indivíduo só existe na vida - só vive - quando se vocaliza, quando é "capaz de gritar seu nome, alto e bom som". De nada adianta o "dom da vida" se o indivíduo não souber usá-lo.
Aqui entra em jogo a complexa e sensível diferença entre Vida e Viver. Canta Gil: "Não tenho medo da vida, mas, sim, medo de viver / Eis a loucura assumida, você há de imaginar / É que a vida atou-se a mim desde o dia em que eu nasci / Viver tornou-se, outrossim, o modo de desatar / Viver tornou-se o dever de me desembaraçar". A vida independe da vontade, do desejo. Viver exige ação, intervenção - eis o medo do sujeito da canção.
"Quem já passou por essa vida e não viveu / Pode ser mais mas sabe menos do que eu / Porque a vida só se dá pra quem se deu / Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu", canta Toquinho, fazendo eco às aflições do sujeito cantado por Gilberto Gil. Assim como o sábio jagunço Riobaldo: "Viver é perigoso, seu moço!". "A vida é simples, eu sei, mas viver traz tanta dor", canta Gil em tom que performatiza um sujeito cancional aparentemente cansado de lutar em ser "por mais distante, um errante navegante" na Terra.
É deste modo que "Não tenho medo da vida" é espelho de outra canção de Gil: "Não tenho medo da morte". Espelhamento que se reflete também na estrutura formal das duas canções: quatro quintetos, com 15 sílabas poéticas em cada verso, que vocalmente se subdividem para formar redondilhas (7 versos) espiralando no campo da melodia o pensamento do sujeito em ato de canção.
"Não tenho medo da morte / Mas sim medo de morrer / Qual seria a diferença / Você há de perguntar / É que a morte já é depois / Que eu deixar de respirar / Morrer ainda é aqui / Na vida, no sol, no ar". Em ambas, o que parece amedrontar o sujeito é a possibilidade de uma ação errada. Por entender-se interligado à engrenagem que condensa todos os outros viventes, o sujeito teme a dor implícita ao viver e ao morrer - verbos do círculo infinito, do eterno retorno.
A voz de Gilberto Gil é a dobradiça entre as duas instâncias do (não) existir. Gil cria a dobradiça ao compor as duas canções colocando os dois sujeitos diante do espelho, equalizando a responsabilidade do vivente diante da vida e da morte. Se em "Não tenho medo da morte", Gil canta "A morte já é depois / Já não haverá ninguém / Como eu aqui agora / pensando sobre o além / Já não haverá o além / O além já será então / Não terei pé nem cabeça / Nem fígado, nem pulmão / Como poderei ter medo / Se não terei coração?", em "Não tenho medo da vida" canta "A vida seria um tom, uma altura a se atingir / Viver é saber subir, alcançar a nota lá / Lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar".
Ou seja, não há como fugir da Vida e da Morte. Já para o viver e o morrer há o canto, a voz que sendo instante-já coloca o sujeito cantante sempre além, na busca permanente de alcançar a altura exata da nota. É na canção, na voz de alguém cantando, no fazer da vida uma obra de arte que o tom é conquistado. E vida e viver se ajustam. Assim como morte e morrer. Os sujeitos criados por Gil sugerem isso ao citar os elementos cabeça, pulmão, coração e tom, nota, ponto. Elementos presentes na mecânica cancional. Ao misturá-los e elegê-los como signos do viver e morrer, os sujeitos das canções recompõem destinos, pois interferem no modo tradicional de ser e estar no mundo. "O pensar quer estar fora do tempo, faz mil conexões de uma só vez e coloca seus objetos em um presente eterno. (...) Pelo contrário, o falar é sempre vinculado ao tempo: não sabe para onde vai e depende da imprevisibilidade do que irão dizer os interlocutores", anota Cavarero (p. 203).
Para Cavarero, "o primeiro passo para liberar a voz de seu gendarme noético, o primeiro gesto contra os cânones desvocalizantes da filosofia, passa por uma tematização privilegiada do falar" (idem, p. 203). Ora, é exatamente isso que o sujeito da canção faz ao destacar que "A vida seria um tom, uma altura a se atingir / Viver é saber subir, alcançar a nota lá / Lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar". As duas perspectivas se unem à de Oswald de Andrade quando escreve: "Só podemos atender ao mundo orecular", no "Manifesto antropófago".
Em "retiro espiritual", os sujeitos da canção "Não tenho medo da vida" e o da canção "Não tenho medo da morte" estão em plena ação de atendimento deste "mundo orecular", condensador do auricular e do oracular. "A dor na carne e na alma, a calma a se propagar / A durar dia após dia, a varar noite, a dormir / A ver o amor a vir a ser, a ter e a tornar / A amanhecer de novo e de novo um novo dia / Isso às vezes me agonia, às vezes me faz chorar", canta.
Gilberto Gil sugere um "pensar com os pulmões", pois observa que o modo tradicional de pensar não dá conta das angústias que atravessam os sujeitos das canções. "O pensador, incluído o Sócrates platônico, conhece antecipadamente os próprios pensamentos. (...) Pelo contrário, o falar é sempre vinculado ao tempo: não sabe para onde vai e depende da imprevisibilidade do que irão dizer os interlocutores" (CAVARERO, idem). O medo de não saber para onde vai é o motor das canções. E é cantando que os sujeitos cancionais vivenciam que "ao contrário do que pensa Platão, inspirador da metáfora sobre a voz da alma, o falar não é um pensar que se exprime em voz alta, ou seja, um pensamento vocalizado, um sucedâneo acústico do pensar. A fenomenologia do falar possui um estatuto autônomo no qual a relacionalidade de bocas e ouvidos ocupa o primeiro plano" (idem, p. 204).
Ao ser ouvido, o sujeito da canção se transmuta em sujeito cancional fazendo com que emissor e ouvinte se encham de vida, de sopro vital vindo dos pulmões daquele. "Cantar, é mover o dom / do fundo de uma paixão / Seduzir, as pedras, catedrais, coração / Amar, é perder o tom / nas comas da ilusão / Revelar, todo o sentido", canta Djavan. Cantar, amar, dom, tom, seduzir, revelar, ilusão, sentido, elementos que se agrupam na canção, na voz de alguém cantando, trazendo a vida aqui, na voz, no auxílio mútuo e luxuoso entre vida e arte cantado pelos sujeitos de Gilberto Gil.
E assim, "a função despersonalizante do pronome eu (...) é anulada pela unicidade inconfundível da voz. O som vence a generalidade do pronome" (CAVARERO, p. 205). Posto que "a voz pertence ao vivente, comunica a presença de um existente em carne e osso, assinala uma garganta, um corpo particular" (idem, p. 207). E só ele, ou melhor, só eu - o ser vivente, este "eu" que se anuncia e presentifica - posso "chorar quando estou triste (...) eu falo e ouço, eu penso e posso".

***

Não tenho medo da vida
(Gilberto Gil)

Não tenho medo da vida, mas, sim, medo de viver
Eis a loucura assumida, você há de imaginar
É que a vida atou-se a mim desde o dia em que eu nasci
Viver tornou-se, outrossim, o modo de desatar
Viver tornou-se o dever de me desembaraçar

A vida é somente um dom independente de quem
Seja capaz de gritar seu nome, alto e bom som
A vida seria um tom, uma altura a se atingir
Viver é saber subir, alcançar a nota lá
Lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar

Não tenho medo da vida, mas medo de viver, sim
A vida é um dado em si, mas viver é que é o nó
Toda vez que vejo um nó, sempre me assalta  o temor
Saberei como afrouxá-lo, desatá-lo eu saberei?
A vida é simples, eu sei, mas viver traz tanta dor

A dor na carne e na alma, a calma a se propagar
A durar dia após dia, a varar noite, a dormir
A ver o amor a vir a ser, a ter e a tornar
A amanhecer de novo e de novo um novo dia
Isso às vezes me agonia, às vezes me faz chorar