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09 maio 2013

Mansidão



Ao cantar uma história que ele supõe e sugere ser sua, o sujeito da canção cria o próprio autoconhecimento e, de viés, em um procedimento que amalgama efeitos lúdicos, estéticos e psicológicos, aproxima-se do ouvinte através da vocoperformance do intérprete. Dito de outro modo: ao reconhecer naquilo que o cantor diz algo que lhe toca por dentro, o ouvinte promove o cantor ao posto de neo-sereia e o sujeito da canção (o eu-lírico) a sujeito cancional.
É quando narra o ouvinte que o sujeito cancional se realiza, é quando convida o ouvinte ao autoconhecimento que a neo-sereia se mostra em sua completude vital e mortífera. O cantor é neo-sereia quando presentifica a canção, quando aquilo que ele diz reflete e refrata o ouvinte. Por isso, o modo de dizer, de cantar é de suma importância.
Na pergunta-canção de Luiz Tatit e Marcelo Jeneci "Por que nós?" o sujeito, via voz do cantor, sugere: "Sempre tem gente pra chamar de nós / Sejam milhares, centenas ou dois / Ficam no tempo os torneios da voz / Não foi só ontem, é hoje e depois / São momentos lá dentro de nós / São outros ventos que vêm do pulmão / Ganham cores na altura da voz / E os que viverem verão".
É dessa irmandade - de milhares, centenas ou dois - entre destinador (cantor) e destinatário (ouvinte) que o sujeito cancional se alimenta para fazer surgir a neo-sereia ali, no ouvido, na frente, dentro do ouvinte-espectador da imanência. É quando o cantor trabalha artesanalmente "momentos lá dentro de nós", trazendo-os à cena nos "torneios da voz", fazendo tais momentos ganhar "cores na altura da voz", que o verão se instala no ouvinte vivente - "Não foi só ontem, é hoje e depois".
Como não pensar em tais coisas ao ouvir/ver Gal Costa cantar "Mansidão", de Caetano Veloso (Recanto ao vivo, 2013)? Como não sentir os "ventos que vêm do pulmão" de Gal ganhando "cores na altura da voz"? Eis o momento de puro amor, de pura poesia que a neo-sereia proporciona ao ouvinte, através das rimas em "im" (mim?) que, por sua vez "chamam" o ouvinte para um estado passional de contemplação interior diante do "vasto céu".
Não resta dúvida, "Mansidão" é poema cantado. Sobre o que é um poema, acredito ser importante trazer uma citação (longa) de Antonio Cícero, do texto "Poesia e preguiça" (In. NOVAES, Adauto (org.). Mutações, elogio à preguiça): "O poema é análogo a outras obras de arte. Tomemos como exemplo de obra de arte um dos quadros em que Rembrandt retrata um velho. O velho é um dos elementos da pintura. Não podemos mais saber se o retrato lhe é fiel; não sabemos sequer se esse velho realmente existiu. Tudo somado, o que realmente conta é o que Rembrandt faz no processo de produção do retrato, no seu embate e jogo como a matéria da pintura. É então que surgem, para o pintor, novas ideias e ambições, assim como novos problemas concretos. A cada passo, o pintor é solicitado pela própria pintura a desenvolver novas soluções pictóricas, em função tanto das necessidades de cada situação imprevista como das oportunidades que antes não existiam. Essas soluções não são apenas o produto das ideias que já se encontram prontas, "escritas na alma" do pintor, mas da combinação de todas as faculdades do artista, além de técnica, inspiração experiência etc. Quando a obra fica pronta, o jogo dessas mesmas faculdades será a fonte do prazer estético de quem a contemplar. A medida na qual a obra provocar esse jogo será a medida do seu valor estético. Desse modo, esse jogo produzirá um pensamento que não é puramente intelectual, mas que se dá também através de cores, luzes, sombras, linhas, planos, volumes etc. Todas essas coisas brincarão umas com as outras no espírito de quem apreciar tal pintura. No final, o quadro não é apenas sobre o velho, embora o velho faça parte de tudo o que o quadro é. No fundo, o tema do quadro é apenas um dos elementos. O quadro é aquilo sobre o qual nós, que o apreciamos, pensaremos e falaremos. Pois bem, assim são os poemas: objetos de palavras, com todos os seus sentidos, seus referentes, seus sons, seus ritmos, suas sugestões, seus ecos." (p. 326-327).
No calor da voz de Gal Costa, "Mansidão" é este móbile de palavras grávido de sentidos e referentes sobre o qual Antonio Cícero fala. Além disso, a letra da canção, com versos como "Esta voz que o cantar me deu é uma festa paz em mim / Violão deita em minha mão, acordar algumas notas // Pois está tudo onde deve estar, nada será ruim / Mansidão, luminosa paz, minha voz e aquela estrela", amplia a presença de alguém-cantor em estado de autocontemplação investigando as energias que lhe impulsiona ao canto, ao cantar.
Os torneios da voz da cantora dá vida ao sujeito cancional que, diante da imensidão do vasto céu, examina a própria epiderme e encontra a mansidão titular do autoconhecimento. Estando no "vasto chão", este procedimento alça Gal Costa ao posto de neo-sereia, acordando algumas notas no violão, que canta o ouvinte – pequeno-grande, semelhante a ela.
Cantar, aqui, "é ter o coração daquilo" que inverte com ganhos para quem canta e para quem ouve as posições "vasto chão/vasto céu". Cantar, aqui, na voz de Gal Costa, é encontrar um lugar no mundo. Um espaço entre o verme e a estrela, como está no poema de Pedro Kilkerry. Um ponto equidistante entre o céu e o chão. Nada tem começo, nada tem fim. "Minha voz, minha vida", canta Gal. "Não foi só ontem, é hoje e depois", canta Tatit. "Tão largo o céu / Tão largo o mar / Tão curta a vida", canta Marisa Monte. E o ordinário é lançado para um lugar primordial, que, se nunca existiu de fato, é modelo onírico.

***

Mansidão
(Caetano Veloso)

Vasto céu, diminuta luz estelar brilha entre as nuvens
Esta voz que o cantar me deu é uma festa paz em mim
Violão deita em minha mão, acordar algumas notas
Colocar com exatidão na sombra o clarão sem fim

Um amor que já me fez chorar agora não fará, não sofro mais assim
Pois está tudo onde deve estar, nada será ruim
Mansidão, luminosa paz, minha voz e aquela estrela
Vasto chão, sensação feliz, seda, linho, lã, cetim

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