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22 agosto 2013

Dois lados da canção



Exatamente por não ter a pretensão de ser plena, e por apontar algo íntimo ao gesto antropofágico (brasileiro), a definição de cultura que mais considero funcional é a de Lotman: "O conjunto de informações não-hereditárias, que as diversas coletividades da sociedade humana acumulam, conservam e transmitem" (In. Schnaiderman. Semiótica Russa, 1979, p.31).
Além de distinguir o acumular, o conversar e o transmitir, o semioticista russo destaca a não-hereditariedade. E é isso o que me interessa nesse conceito de cultura. Acredito que é este "sol que nasce, a cada dia / a cada aniversário / contra o que for hereditário", como cantam os Titãs, o que "sustenta" o conjunto de informações que compõem a(s) cultura(s). Este não-hereditário de Lotman me remete ao predomínio do materno, à problematização do patriarcado, à violência do instituto da herança patrilinear. Questões-base do pensamento oswaldiano.
Outro motivo da minha bem-querência em relação à definição de Lotman é a representação de cultura como uma estrutura horizontal, não-pré-hierarquizada, mas com uma hierarquia de códigos complexa, como rede sistêmica formada por definidores pontos de contato. Para o autor, "todo o material da história da cultura pode ser examinado sob o ponto de vista de uma determinada informação de conteúdo e sob o ponto de vista do sistema de códigos sociais, as quais permitem expressar esta informação por meio de determinados signos e torná-la patrimônio destas ou daquelas coletividades humanas" (p. 33). Daí que tudo é significativo: e o que é variável e o que é invariável na cultura?
Faço estas anotações para alicerçar meu comentário sobre a canção "Dois lados da canção", de José Luis Braga e Luiz Gabriel Lopes (Graveola e o Lixo Polifônico, 2009). Temos aqui a explosão do protocolo da assinatura autoral comum à cultura cancional contemporânea, pois o sujeito da canção parece investido do instinto caraíba, reescrevendo versos canônicos da canção popular. Por exemplo: "Hoje eu ouço as canções que você fez pra mim" transforma-se em "Quando eu ouço as canções que eu fiz pra você". Ou "Eu juro que é melhor / não ser o normal" ("Balada do louco") em "Eu juro que é melhor, enfim / eu juro vai ser melhor assim".
Seria o sujeito da canção "Dois lados da canção" o destinatário da canção "As canções que você fez pra mim", de Roberto Carlos e Erasmo Carlos? Pode ser. A mudança no tempo - "hoje" versus "quando" - é significativa. Enquanto o primeiro parece imóvel, fixo ("amanhã já é outro lugar"), o segundo sugere retorno, mobilidade e volta. É esse gesto de receber e conservar torcendo e distorcendo a informação o que parece caracterizar a "cultura brasileira".
Em tempos de inúmeras e confortáveis (econômica e esteticamente) releituras, reedições e regravações, tendo como base aquilo que Zeca Baleiro bem definiu como "É mais fácil mimeografar o passado que imprimir o futuro", "Dois lados da canção" se impõe como ácido antropofágico necessário ao acúmulo, à conservação e à transmissão da cultura, este palimpsesto infinito (Barthes).
As citações não se limitam ao campo da letra. O andamento melódico complexo é a bricolagem das linhas melódicas tanto da versão de Roberto Carlos, quanto da versão de Maria Bethânia para "As canções que você fez pra mim", com mais aproximação desta. Além disso, há um rascunho de imitação do registro vocal de Bethânia aqui e de Belchior ali, nada caricato, mas destronizante - convivência de temporalidades históricas distintas; agravamento da "crise do museu", daquilo que está tombado, canonizado, entronizado (Bakhtin).
O sujeito da canção, aqui, é um operador de relações intertextuais: diálogo entre sujeitos cancionais e da canção. Canções iluminando canções, rompendo a noção de linha evolutiva, naquilo que isso se refere a certo "passar o bastão" (hereditariedade). Continuidade e movimento a serviço da vivência sem centro dos "tênues fios" que ligam uma canção à outra. Esta relação afetiva e não submissa com o passado é decisiva: "pra que te esquecer / se o amor é tanto? / existo em você / por louco engano", diz o sujeito da canção. "Mas louco é quem me diz / E não é feliz / Eu sou feliz", ecoam os mutantes.

***

 Dois lados da canção
(José Luis Braga / Luiz Gabriel Lopes)

quando eu ouço as canções que eu fiz pra você
o tempo vem dizer
o que o tempo deve ser
o espaço em que agora o meu passo chegar
vai dizer: - amanhã já é outro lugar

eu juro que é melhor, enfim
eu juro vai ser melhor assim

eu já não ligo mais para você
hoje não canto
não falo, não saio, não durmo bem
os tênues fios que me ligam a você estão hoje em prantos
e no entanto arriscamos tanto nos envolver

desligo você
nus, deslizamos
pra que te esquecer
se o amor é tanto?
existo em você
por louco engano

01 agosto 2013

Dueto



Tenho usado o termo "indivíduo" para designar o "ser empírico", social, vivente, biológico, cotidiano. E os termos "sujeito cancional" e/ou "sujeito da canção" para apontar, guardadas as diferenças, o "eu-lírico", o "eu-poético", a voz que "fala" a canção de dentro da canção. Faço isso por uma questão didática, pois um não se opõe aos outros. Pelo contrário, como tenho tentado mostrar, a "voz da canção" é no "ser individual" quando este é singularizado por aquela, quando a subjetividade deste age para significar a potência daquela.
Estou dizendo que a subjetividade parte da massa, de quando o indivíduo transvaloriza algo feito para reduzi-lo à uma unidade – a canção popular de consumo, por exemplo – em cartaz potencializador de desejos. Ou seja, como também já tentei mostrar aqui, a neo-sereia, o cantor popular mediatizado, só existe na significação que o ouvinte faz do canto neo-sirênico. Dito de outro modo, a neo-sereia e o ouvinte existem quando este faz dos significantes emitidos pelo cantor um cartaz singular.
Deste modo, entramos nos usos feitos por Nietzsche para os conceitos de "imanência" e "transcendência". Bem como na definição de "comum" utilizada por Antonio Negri. É quando o indivíduo dispensa a transcendência do canto emitido às massas, "para todos" e transforma, por apropriação corporal, a canção em cartaz subjetivo que se comprova que os elementos imanentes só precisam da excitação dos sentidos para se mostrar. Quando o "canto comum" agrega subjetividades por fazer do espaço estético uma "vivência comum", entramos no "espaço real" significado pelo singular.
É sobre esses "cartazes singulares", enquanto elementos de composição da multidão, que Barbara Szaniecki disserta no precioso livro Estética da multidão (2007). Partindo da problemática da representação da corte de Felipe IV, da Espanha, até as manifestações globais contemporâneas, a autora enfrenta o complexo trabalho de verificar as características dos cartazes nos campos sociológico, político e ontológico, a fim de instaurar uma reflexão sobre as "manifestações de potência na democracia da multidão".
Szaniecki capta a tensão entre "imagens que agem" (de poder) e as "imagens que reagem" (de potência) e anota que: "A noção de potência vai além do conceito de resistência, no sentido de que não se limita a uma reação negativa (posterior) a uma ação positiva (anterior). Além de positiva, a potência enquanto poder constituinte implica movimento, enquanto o poder constituído ou institucionalizado provoca necessariamente o retorno à inércia" (p. 15).
As investigações de Szaniecki nos ajudam a aprofundar a ideia que defendemos de que é quando o indivíduo "reage" à canção, ao canto massificante, apropriando-se, traduzindo e incorporando ela na vivência pessoal, que ele se mobiliza em direção à potência do desejo. Quando o cantor deixa de ser um mero representante do transcendente (do mercado) e canta o ouvinte, cooperando com este na sua expressão imanente, ambos, cúmplices, fundam uma "estética constituinte" – liberadora, horizontal, sem soberania, fratriarcal.
E é exatamente a recusa à soberania transcendental, ou, melhor, o duelo entre transcendência e imanência aquilo que encontramos em "Dueto", de Chico Buarque. Gravada pelo próprio compositor em parceria com Nara Leão, para a peça O Rei de Ramos (1979), de Dias Gomes, a canção recebeu uma regravação de Izabel Padovani e Renato Braz (Desassossego, 2006).
A crise na representação se configura da seguinte forma: 1- O sujeito da canção aponta as "imagens de poder" (transcendência): "Consta nos astros / Nos signos / Nos búzios / Tá lá no evangelho / Garantem os orixás / Nos autos / Nas bulas / Nos dogmas"; 2- O sujeito afirma o desejo: "Serás o meu amor / Serás a minha paz"; 3- O sujeito rompe com as "imagens de poder", caso estas contrariem o desejo: "Danem-se os astros / Os autos / Os signos / Os dogmas / Os búzios / As bulas"; 4- A crise de representação é instaurada e uma nova afirmativa é posta: "Consta na pauta / No karma / Na carne / Passou na novela / Está no seguro / Pixaram no muro / Mandei fazer um cartaz"; e 5- A imanência é exaltada: "Consta nos mapas / Nos lábios / Nos lápis". Tudo-nada depende deles, dos amantes, da disposição do corpo-alma deles.
O sujeito canta sua posição diante da crise entre a representação transcendente (de fora, institucionalizada, burocrática, ordenadora) e a manifestação da potência imanente (de dentro, inacabada, experimental, de carne, osso e memória). O sujeito é mais que um espectador do "destino". E ergue cartaz próprio para afirmar isso: "Serás o meu amor / Serás a minha paz".
O gesto de erguer um cartaz, contrariando todas as representações que o limitavam, leva o sujeito da canção a se aproximar fraternalmente do ouvinte também desejoso de seguir os próprios desejos. Erguer o cartaz, cantar o desejo é aquilo que de "comum" existe entre sujeito cancional e ouvinte. Este se sente traduzido, "representado" por aquele, mas não transcendentalmente, e sim de forma horizontal, porque não há distância entre aquilo que os dois sentem, ao contrário, há um "arranjo interno" que os aproxima.
Portanto, o aporte que Barbara Szaniecki traz à nossa discussão, alicerçada nas leituras de Bakhtin, Foucault e, principalmente, Antonio Negri, aprofundam as questões que defendemos aqui. A multiplicidade da potência, geradora de cartazes, alimenta e é alimentada por aquilo que temos chamado de neo-sereia: o ser estético que age no cancionista humano. A eficácia do cartaz-canção está na imediata sintonia acesa entre cantor e ouvinte. Nenhum dos dois perde a identidade, eles se comunicam no canto de potências assemelhadas.
É por esta perspectiva que entendemos o sujeito de "Minha tribo sou eu", de Zeca Baleiro. Quando o sujeito "diz": "Eu não sou cristão / eu não sou ateu / Não sou japa não sou chicano / Não sou europeu / Eu não sou negão / Eu não sou judeu / Não sou do samba nem sou do rock / Minha tribo sou eu", mais do que negar todas essas bandeiras generalizantes, ou impor a exacerbação do individualismo cego, ele está reivindicando o direito à íntima subjetividade, que não se vê representada nem com isso, nem com aquilo que o sujeito elenca.
Segundo Szaniecki, "Em termos políticos, e possivelmente estéticos, o conceito de 'povo' – corpo social representado de forma transcendente – seria superado pelo conceito de 'multidão' – cooperação social expressa de forma imanente. Passamos de uma unidade representacional e transcendental abstrata para uma multiplicidade cooperativa e imanente concreta" (p. 110).
Seguindo esta linha de pensamento, os sujeitos das canções de Chico Buarque e Zeca Baleiro são símbolos metafóricos deste "ser da multidão", que não se apaga na massa, ao contrário, distingue-se e comunga com outros, também distintos e comuns, ao se misturar. Eis a demonstração do "desejo de uma vida comum", estudada por Antonio Negri. Para o autor, em 5 lições sobre império: "A multidão não é nem encontro da identidade, nem pura exaltação das diferenças, mas é o reconhecimento de que, por trás das identidades e diferenças, pode existir 'algo comum'" (p. 148). Ao que Barbara Szaniecki complementa: "A cooperação, comunicação e criação da multidão seria a materialização desse 'algo comum'" (p. 112).
Produto da indústria cultural, de massa, a canção popular não tem um "dono efetivo". Obviamente, não estou tratando aqui de direitos autorais, mas da potência comunicativa da canção. Estou querendo dizer que ao cantar (traduzir em canção) aquilo que o ouvinte "quer" ouvir, o cantor é neo-sereia que mobiliza e inflama o desejo. Enquanto expressão de potência, o cancionista coopera produtivamente na vida do ouvinte-expressão-de-potência. E este ouvinte se "organiza" e se manifesta no ato da audição. É o ouvinte na multidão quem transforma o verso cancional em potência.

***

 Dueto
(Chico Buarque)

Ela: Consta nos astros
Nos signos
Nos búzios
Eu li num anúncio
Eu vi no espelho
Tá lá no evangelho
Garantem os orixás
Serás o meu amor
Serás a minha paz

Ele: Consta nos autos
Nas bulas
Nos dogmas
Eu fiz uma tese
Eu li num tratado
Está computado
Nos dados oficiais
Serás o meu amor
Serás a minha paz

Ela: Mas se a ciência provar o contrário
Ele: E se o calendário nos contrariar

Os dois: Mas se o destino insistir
Em nos separar
Danem-se

Ela: Os astros
Ele: Os autos
Ela: Os signos
Ele: Os dogmas
Ela: Os búzios
Ele: As bulas
Ela: Anúncios
Ele: Tratados
Ela: Ciganas
Ele: Projetos
Ela: Profetas
Ele: Sinopses
Ela: Espelhos
Ele: Conselhos
    
Os dois: Se dane o evangelho
E todos os orixás
Serás o meu amor
Serás, amor, a minha paz

Ele: Consta na pauta
Ela: No karma
Ele: Na carne
Ela: Passou na novela
Ela: Está no seguro
Ele: Pixaram no muro
Ele: Mandei fazer um cartaz

Os dois: Serás o meu amor
Serás a minha paz

Ele: Consta nos mapas
Ela: Nos lábios
Ele: Nos lápis
Ela: Consta nos Ovnis
Ele: No Pravda
Ela: Na vodca