Pesquisar canções e/ou artistas

23 maio 2013

Bamba querê



São vários e complexos os caminhos que levam à musicalização de um texto escrito. Sabemos que as palavras tem "musicalidade", mas esta só é efetivada na voz, na vocalização da palavra. Sentimos esta musicalidade, já devidamente naturalizada dentro de nós, ao ler silenciosamente um texto porque estamos infectados pela memória sonora da palavra falada (cantada), pela sua materialidade vocal.
Encontrar a gestualidade vocal exata, equilibrar texto e música na voz para "melhor dizer" uma mensagem é tarefa árdua e prazerosa enfrentada pelo cancionista. O certo é que se não há um "jeito único" de vocalizar um texto, cabe ao destinador esquentá-lo de modo a transmitir a mensagem da melhor forma possível à compreensão do destinatário. Do mesmo modo como fazemos ao falar. Ou seja, as "mesmas palavras" servem a intenções diversas e para diferenciar as intenções a voz entra em ação. Quando lemos um texto, entre outros artifícios, os sinais oferecidos pelo narrador são o que nos auxilia a distinguir as intenções.
Caetano Veloso, por exemplo, opta por uma cama sonora passional para musicar/vocalizar um trecho do livro Minha formação, de Joaquim Nabuco, incentivado pela constatação do narrador que diz: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil". Ao falar sobre o permanência fantasmagórica da escravidão como algo introjetado ao jeito de ser do brasileiro, entre lembranças, saudades e afirmações, o cancionista recusa qualquer gesto que nublaria sua introspecção, sua reflexão interna sobre o caso. "É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte", Caetano Veloso finaliza vocalmente melancólico para plasmar a melancolia do sujeito da canção, do narrador de Nabuco.
Dito isso, podemos começar a entrar no entendimento da proliferação de sons com a qual Iara Rennó presenteia o ouvinte do disco Macunaíma Ópera Tupi (2008). Tradução intersemiótica do livro Macunaíma – o herói sem nenhum caráter, o disco de Iara musica e vocaliza trechos levando o ouvinte a empreender uma viagem etno-antropo-semio-musicológica tal e qual a organizada pelo musicólogo Mário de Andrade na seminal Missão de Pesquisas Folclóricas. O disco é o resultado das anotações afetivas a partir da leitura de Iara sobre o livro.
Notas sobre notas, somos convidados a navegar com Macunaíma pela diversidade do Brasil sonoro. Turistas aprendizes que somos. Justapondo música erudita e música folclórica, bem como funk, eletrônico, sem juízos de valor, mas pelo prazer do gesto brasileiro, o disco explicita o vigor plural e étnico do país. E o conjunto resulta em ritual sincrético: violino e tambor, eletrônico e cordel, psicodelia e cantigas folclóricas, o Tupi e o alaúde. Embolada, repente, rap. Difícil definir. Melhor sentir e reconhecer na (pro)fusão os rascunhos de Brasil.
Ao extrair do livro reconhecidamente importante ao cânone literário brasileiro os trechos e versos que compõem as canções do disco, Iara promove, via instinto caraíba, a valorização da antropofagia como signo estético e artístico. Além de devolver às palavras a vocalização contida nelas antes de Mário de Andrade as fixar no papel.
Iara revocaliza lendas, mitos e rituais indígenas, africanos e portugueses com a mesma perspicácia rapsódica engendrada pelo autor do livro. E, assim, a "ópera tupi", a "odisseia" de Mário se (re)traduz em veículo da tradição vocal e popular. Como o autor anota ao final do livro: "Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói da nossa gente".
Traindo a tradição para manter a beleza da tradição, Iara copia, recorta, cola, mistura a "fala impura". Vejamos o exemplo de "Bamba querê. A canção incorpora a cadência das aliterações presentes no texto de tal modo que fica difícil para o ouvinte imaginar outra rítmica senão a criada e inventada por Iara. É na dança do orixá Iemanjá no terreiro que Iara se mira para construir a canção e plasmar a imagem do cavalo possuído diante do ouvinte. Vejamos o trecho do livro de onde a cantora capturou a canção:

No outro dia o tempo estava inteiramente frio e o herói resolveu se vingar de Venceslau Pietro Pietra dando uma sova nele pra esquentar. Porém por causa de não ter força tinha mas era muito medo do gigante. Pois então resolveu tomar um trem e ir no Rio de Janeiro se socorrer e Exu diabo em cuja honra se realizava uma macumba no outro dia.
Era junho e o tempo estava inteiramente frio. A macumba se rezava lá no Mangue no zungu da tia Ciata, feiticeira como não tinha outra, mãe-de-santo famanada e cantadeira ao violão. Às vinte horas Macunaíma chegou na biboca levando debaixo do braço o garrafão de pinga  obrigatório. Já tinha muita gente lá, gente direita, gente pobre, advogados garçons pedreiros meias-colheres deputados gatunos, todas essas gentes e a função ia principiando. Macunaíma tirou os sapatos e as meias como os outros e enfiou no pescoço a milonga feita de cera de vespa tatucaba e raiz seca de assacu. Entrou na sala cheia e afastando a mosquitada foi de quatro saudar a candomblézeira imóvel sentada na tripeça, não falando um isto. Tia Ciata era uma negra velha com um século no sofrimento, javevó e galguincha com a cabeleira branca esparramada feito luz em torno da cabeça pequetita. Ninguém mais não enxergava olhos nela, era só ossos duma compridez já sonolenta pendependendo, pro chão de terra.
Vai, um rapaz filho de Ochum, falavam, filho de Nossa Senhora da Conceição cuja macumba era em dezembro, distribuiu uma vela acesa pra cada um dos marinheiros marcineiros jornalistas ricaços gamelas fêmeas empregados-públicos, muitos empregados-públicos! Todas essas gentes e apagou o bico de gás alumiando a saleta.
Então a macumba principiou de deveras se fazendo um çairê pra saudar os santos. E era assim: Na ponta vinha o ogã tocador de atabaque, um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadistas de profissão, se chamando Olelê Rui Barbosa. Tabaque mexiamexia acertado num ritmo que manejou toda a procissão. E as velas jogaram nas paredes de papel com florzinhas, sombras tremendo vagarentas feito assombração. Atrás do ogã vinha tia Ciata quase sem mexer, só beiços puxando a reza monótona. E então seguiam advogados taifeiros curandeiros poetas o herói gatunos portugas senadores, todas essas gentes dançando e cantando a resposta da reza. E era assim:
— Va-mo sa-ra-vá!...
Tia Ciata cantava o nome do santo que tinham de saudar: v. ...
— Ôh Olorung!
E a gente secundando:
— Va-mo sa-ra-vá!...
Tia Ciata continuava:
— Ô Boto Tucuchi!
E a gente secundando:
— Va-mo sa-ra-vá!...
Docinho numa reza mui monótona.
— Ô Iemanjá! Anamburucu! e Ochum! três Mães-d'água!
— Va-mo sa-ra-vá!...
Assim. E quando a tia Ciata parava gritando com gesto imenso:
— Sai Exu!
porque Exu era o diabo-coxo, um capiroto malévolo, mas bom porém pra fazer malvadezas, era um tormento na sala uivando:
— Uuum!... uuum!... Exu! Nosso padre Exu...!
E o nome do diabo reboava com estrondo diminuindo o tamanhão da noite fora. O çairê continuava:
— Ôh Rei Nagô!
— Va-mo sa-ra-vá!... Docinho na reza monótona.
— Ôh Baru!
— Va-mo sa-ra-vá!...
Quando sinão quando tia Ciata parava gritando com gesto imenso:
— Sai Exu!
porque Exu era o pé-de-pato, um jananaíra malévolo. E de novo era o tormento na sala uivando:
— Uuuum!... Exu! Nosso padre Exu!...
E o nome do diabo reboava com estrondo encurtando o tamanho da noite.
— Ôh Oxalá!
— Va-mo sa-ra-vá!...

Como vemos, Iara Rennó antologiza, em tom mario-andradiano, exatamente os versos vocalizados para montar a canção "Bamba querê". A querência de Iara desterritorializa, remelexe, bambeia extratos sonoros para (re)apresentá-los encapsulados em forma de uma canção una, núcleo duro do país de semiologia macunaímica. E, assim como Haroldo de Campos anotou sobre o livro, “no coquetel, porém, havia método” (em Morfologia do Macunaíma, 1973, p. 79), no canto de Iara – ou seria da Iara (sereia)? – há a aplicação do método daquilo que podemos chamar, juntos com José Celso Martinez Corrêa, de “macumba antropofágica”. Desse modo, a "linhagem rabelaisiana" presente no livro é restaurada por Iara na canção, no disco: do cruzamento de várias sintaxes ao protagonismo da voz, passando pelo além do bem e do mal nietzschiano.

***

 Bamba querê
(Mário de Andrade / Iara Rennó)

Bamba querê
Sai Aruê
Mongi gongo
Sal Orobô
Êh!

Ô mungunzá 
Bom acaçá 
Vancê nhamanja 
De pai Guenguê
Êh!

Ôh Olorong!
Boto Tucuchi!
Ô Iemanjá!
Anamburucu!
Oxum!
três Mães-d'água!
- Va-mo Sa-ra-vá!

16 maio 2013

Beijo da Iara



Como sabemos, mitologicamente a poesia (o logos poético) está ontologicamente imbricada à musicalidade, ao ritmo da vocalização das palavras. Convenientemente, o corte acontece no Renascimento, momento de radicalização do longo processo filosófico de desvocalização do logos. "Capturando a phoné no sistema da significação, a filosofia não só torna inconcebível um primado da voz sobre a palavra como também não concebe ao vocálico nenhum valor que seja independente do semântico. Reduzida a significante acústico, a voz depende do significado. Longe de ser óbvia, essa dependência é fundamental. Ela aprisiona a voz num sistema complexo que subordina a esfera acústica à visual", anota Adriana Cavarero, em Vozes plurais (2011, p. 52).
É também Cavarero quem registra: "A matriz etimológica é conhecida. Logos deriva do verbo legein. Desde a Grécia arcaica, este verbo significa tanto 'falar' quanto 'recolher', 'ligar', 'conectar'. Isso não é surpreendente, uma vez que quem fala liga as palavras umas às outras, uma após a outra, recolhendo-as em seu discurso. Tampouco é estranho que, exatamente por isso, legein signifique também 'contar' e, ainda mais propriamente, 'narrar'. Na sua acepção comum, o logos se refere à atividade de quem fala, de quem liga os nomes aos verbos e a qualquer outra parte do discurso. O logos consiste essencialmente numa conexão de palavras. Justamente nesse plano da conexão, que 'liga' e 'recolhe' segundo determinadas regras, está centrada a atenção da filosofia. Centrada inclusive com prejuízo – mas talvez fosse melhor dizer: sobretudo com prejuízo – do plano acústico da palavra. O logocentrismo filosófico se interessa, principalmente, pela ordem que regula a conexão, isto é, pela linguagem como sistema da significação". (p. 50-51).
Felizmente, parte importante dos pensadores, entre eles Adriana Cavarero, vem questionando os paradigmas de base platônica de desvocalização do logos. O ponto central da questão não é a desvalorização da escrita, ou sua negação, mas observar os contatos, as intersecções e os pontos de mutação entre a palavra falada e a palavra escrita. Importa ouvir o logos não para "entende-lo" (racionalmente), mas para a partir dele escolher caminhos. Ou seja, questionar a ordem que regula a conexão entre as palavras e se deixar envolver com a "força bruta": ser criação ao ritmo do plano acústico da palavra.
"Quando dizemos que o som era sentido, sua força era de tocar o homem para qualquer lugar e não de fazer o homem refletir sobre este fenômeno, dividi-lo ou analisá-lo. Assim, a gestualidade espontânea do corpo é já por si mesma certa objetivação, uma certa manifestação do sentido. Ela não é, obviamente, a objetivação de uma ideia, mas a de uma situação no mundo sobre a qual se decalcam as próprias ideias", anota Li Tomás, em Ouvir o lógos: música e filosofia (2002, p. 50).
É por isso que a proposta do meu trabalho passa por um retorno mitológico do vocalizar, do cantar, do narrar: por reconhecer aqui que a sonoridade das palavras tem mais relevância do que seus significados. Ou melhor, que o plano acústico da palavra está visceralmente ligado à significação empreendida pelo ouvinte. Daí também que um livro como Milagrário pessoal, de Jose Eduardo Agualusa, ajuda na argumentação de minha intenção. 
Temos no livro de Agualusa o embate entre um professor e uma ex-aluna (Iara), linguista, cujo trabalho é identificar e dicionarizar as palavras novas. "A Iara interessam sobretudo as palavras recém-nascidas, ainda úmidas, ofegantes, indefesas, caídas de repente nesse vasto alarido que é a vida. Para encontrar eventuais neologismos serve-se de um programa informático, o Neotrack, o qual recolhe, a partir dos jornais do dia disponíveis na internet, as palavras não dicionarizadas" (p. 15).
Fazendo uso de uma escrita que utiliza o ritmo da fala, posto que a "sensação" criada é a de uma conversa entre narrador e leitor, Agualusa tematiza a complementaridade entre a fala e a escrita. O narrador se dirige diretamente ao leitor, bem como faz avanços e recuos no tempo, suspensões da narrativa para inserir outras histórias, num procedimento típico da oralidade. 
Iara entra em conflito quando percebe a disseminação inesperada de um grande número de neologismos. E busca a ajuda do antigo professor para entender o problema. Em geral, personagens femininas são o motor dos romances de Agualusa, na contramão de certa corrente que silencia as mulheres que cantam.
Referência indígena brasileira, em Milagrário pessoal Iara, para além da personagem, mas mimetizada ao narrador, é a sereia que seduz o leitor a ouvir o som das palavras: "Até esta altura qual foi o neologismo mais bonito que tu encontraste? Iara esperava a pergunta: Não sei, rendeu-se. Nunca me apareceu uma palavra bonita. Mesmo bonita. A verdade é que os neologismos são quase todos feios. Acho-os, de uma forma geral, grosseiros e enfadonhos" (p. 16-17). Mais adiante, quando instigada a escolher as dez palavras mais bonitas da língua, Iara sugere que é a sonoridade o que as tornam bonitas e grávidas de significado. 
A indicação de Iara como sereia, gesto de recuperação, apropriação e manipulação do mito feito por Agualusa durante todo o romance, está presente já na capa do livro. Tanto na edição portuguesa – fotografia de uma imagem de Iara em local de devoção, quanto na brasileira – fotografia “A Sereia e o Cinema”, still do vídeo Psinoe, de Adriana Varejão.

Seja como for, a sereia amazônica Iara imprime sua mitopoética no imaginário da língua portuguesa-brasileira e se espalha pelas artes. De José de Alencar (O tronco do ipê) ao grupo Axial ("Beijo da Iara", de Kiko Dicucci), passando por Olavo Bilac ("Iara"), que descreve a sereia: "Vive dentro de mim, como num rio, / Uma linda mulher, esquiva e rara, / Num borbulhar de argênteos flocos, Iara / De cabeleira de ouro e corpo frio. / Entre as ninfeias a namoro e espio: / E ela, do espelho móbil da onda clara, / Com os verdes olhos úmidos me encara, / E oferece-me o seio alvo e macio. / Precipito-me, no ímpeto de esposo, / Na desesperação da glória suma, / Para a estreitar, louco de orgulho e gozo... / Mas nos meus braços a ilusão se esfuma: / E a mãe-d'água, exalando um ai piedoso, / Desfaz-se em mortas pérolas de espuma.". Entre outras tantas inúmeras aparições. 
A título de mais um exemplo, na canção "Kirimurê", de Jota Velloso, ela é a sereia que canta a afirmação da existência de um povo que foi dizimado – "Onde era mata hoje é Bonfim / De onde meu povo espreitava baleias / É farol que desnorteia a mim" – e da certeza da permanência do desejo de ser os donos daqui: "Se me der a folha certa / E eu cantar como aprendi / Vou livrar a Terra inteira / De tudo que é ruim". Sabe-se que a região que hoje conhecemos como Baía de todos os santos era chamada pelos tupinambás de Kirimurê. Na voz de uma Maria Bethânia (Mar de Sophia, 2006) mimetizada em Iara, a canção ganha sentidos amplos: "Espelho virado ao céu / Espelho do mar de mim / Iara índia de mel / Dos rios que correm aqui / Rendeira da beira da terra / Com a espuma da esperança (...) Na fome da minha gente / E nos traços que eu guardo em mim / Minha voz é flecha ardente / Nos catimbós que vivem aqui".
Assemelha-se a essa "Iara índia de mel", a cantada pelo grupo Axial em "Beijo de Iara" (Simbiose, 2011). Ambas são concentração de doçura e resistência, "espelho virado ao céu" a refletir no ouvinte que a escuta a beleza de seu canto beira-rio. Diz o sujeito da canção: "Ouvi no beira-rio / um canto ecoar / é a mãe d´água / pra me encantar". 
Senhora das águas ou Mãe-d'água, a mitopoética de Iara é contada vocalmente e passa gerações. O sujeito da canção recolhe e condensa algumas narrativas sobre a sereia. Nos versos "Rema rema remador / Iara quer te namorar / quem provar dos beijos seus / com a morte vai se casar", temos tanto a retomada da cantiga folclórica "Rema rema remador, que este barco é do Senhor", quanto da marchinha "Marcha do remador”: Rema, rema, rema, remador / Quero ver depressa o meu amor / Se eu chegar depois do sol raiar / Ela bota outro em meu lugar". No encontro dos fragmentos das canções permanece o mote de não sucumbir ao canto mortal.
Mas está no modo de apresentação da canção por Sandra Ximenez (vocais e piano elétrico), Felipe Julián (loops, ruídos e teclados) e Leonardo Muniz Corrêa (clarinete) o engenho do encanto. O clima sonoro criado pelo grupo presentifica a mítica sereia. O palimpsesto cultural brasileiro, onde Iara se forja, é apontado na palheta de sons do grupo Axial. E assim o feitiço se realiza: "Espelho virado ao céu / Espelho do mar de mim / Iara índia de mel / Dos rios que correm aqui", como canta Bethânia. Ou: "Sinhá sereia chegou / beldade maior / nunca se viu // Deixa eu banhar você / lavar teus cabelos / nas águas do rio". 
O grupo Axial e Maria Bethânia mostram que a potência da palavra está em sua vocalização. É assim também que age o narrador de Agualusa: logos vocalizado, quente e úmido na voz de alguém cantando. "O corpo aí se recolhe. É uma voz que ele escuta e ele reencontra uma sensibilidade que dois ou três séculos de escrita tinham anestesiado, sem destruir", como observaria Paul Zumthor, em Performance, recepção, leitura (2007, p. 60). Surge o beijo. Da Iara.

 ***

Beijo da Iara
(Kiko Dicucci)

Ouvi no beira-rio
um canto ecoar
é a mãe d'água
pra me encantar

Rema rema remador
Iara quer te namorar
quem provar dos beijos seus
com a morte vai se casar

Sinhá sereia chegou
beldade maior
nunca se viu

Deixa eu banhar você
lavar teus cabelos
nas águas do rio

09 maio 2013

Mansidão



Ao cantar uma história que ele supõe e sugere ser sua, o sujeito da canção cria o próprio autoconhecimento e, de viés, em um procedimento que amalgama efeitos lúdicos, estéticos e psicológicos, aproxima-se do ouvinte através da vocoperformance do intérprete. Dito de outro modo: ao reconhecer naquilo que o cantor diz algo que lhe toca por dentro, o ouvinte promove o cantor ao posto de neo-sereia e o sujeito da canção (o eu-lírico) a sujeito cancional.
É quando narra o ouvinte que o sujeito cancional se realiza, é quando convida o ouvinte ao autoconhecimento que a neo-sereia se mostra em sua completude vital e mortífera. O cantor é neo-sereia quando presentifica a canção, quando aquilo que ele diz reflete e refrata o ouvinte. Por isso, o modo de dizer, de cantar é de suma importância.
Na pergunta-canção de Luiz Tatit e Marcelo Jeneci "Por que nós?" o sujeito, via voz do cantor, sugere: "Sempre tem gente pra chamar de nós / Sejam milhares, centenas ou dois / Ficam no tempo os torneios da voz / Não foi só ontem, é hoje e depois / São momentos lá dentro de nós / São outros ventos que vêm do pulmão / Ganham cores na altura da voz / E os que viverem verão".
É dessa irmandade - de milhares, centenas ou dois - entre destinador (cantor) e destinatário (ouvinte) que o sujeito cancional se alimenta para fazer surgir a neo-sereia ali, no ouvido, na frente, dentro do ouvinte-espectador da imanência. É quando o cantor trabalha artesanalmente "momentos lá dentro de nós", trazendo-os à cena nos "torneios da voz", fazendo tais momentos ganhar "cores na altura da voz", que o verão se instala no ouvinte vivente - "Não foi só ontem, é hoje e depois".
Como não pensar em tais coisas ao ouvir/ver Gal Costa cantar "Mansidão", de Caetano Veloso (Recanto ao vivo, 2013)? Como não sentir os "ventos que vêm do pulmão" de Gal ganhando "cores na altura da voz"? Eis o momento de puro amor, de pura poesia que a neo-sereia proporciona ao ouvinte, através das rimas em "im" (mim?) que, por sua vez "chamam" o ouvinte para um estado passional de contemplação interior diante do "vasto céu".
Não resta dúvida, "Mansidão" é poema cantado. Sobre o que é um poema, acredito ser importante trazer uma citação (longa) de Antonio Cícero, do texto "Poesia e preguiça" (In. NOVAES, Adauto (org.). Mutações, elogio à preguiça): "O poema é análogo a outras obras de arte. Tomemos como exemplo de obra de arte um dos quadros em que Rembrandt retrata um velho. O velho é um dos elementos da pintura. Não podemos mais saber se o retrato lhe é fiel; não sabemos sequer se esse velho realmente existiu. Tudo somado, o que realmente conta é o que Rembrandt faz no processo de produção do retrato, no seu embate e jogo como a matéria da pintura. É então que surgem, para o pintor, novas ideias e ambições, assim como novos problemas concretos. A cada passo, o pintor é solicitado pela própria pintura a desenvolver novas soluções pictóricas, em função tanto das necessidades de cada situação imprevista como das oportunidades que antes não existiam. Essas soluções não são apenas o produto das ideias que já se encontram prontas, "escritas na alma" do pintor, mas da combinação de todas as faculdades do artista, além de técnica, inspiração experiência etc. Quando a obra fica pronta, o jogo dessas mesmas faculdades será a fonte do prazer estético de quem a contemplar. A medida na qual a obra provocar esse jogo será a medida do seu valor estético. Desse modo, esse jogo produzirá um pensamento que não é puramente intelectual, mas que se dá também através de cores, luzes, sombras, linhas, planos, volumes etc. Todas essas coisas brincarão umas com as outras no espírito de quem apreciar tal pintura. No final, o quadro não é apenas sobre o velho, embora o velho faça parte de tudo o que o quadro é. No fundo, o tema do quadro é apenas um dos elementos. O quadro é aquilo sobre o qual nós, que o apreciamos, pensaremos e falaremos. Pois bem, assim são os poemas: objetos de palavras, com todos os seus sentidos, seus referentes, seus sons, seus ritmos, suas sugestões, seus ecos." (p. 326-327).
No calor da voz de Gal Costa, "Mansidão" é este móbile de palavras grávido de sentidos e referentes sobre o qual Antonio Cícero fala. Além disso, a letra da canção, com versos como "Esta voz que o cantar me deu é uma festa paz em mim / Violão deita em minha mão, acordar algumas notas // Pois está tudo onde deve estar, nada será ruim / Mansidão, luminosa paz, minha voz e aquela estrela", amplia a presença de alguém-cantor em estado de autocontemplação investigando as energias que lhe impulsiona ao canto, ao cantar.
Os torneios da voz da cantora dá vida ao sujeito cancional que, diante da imensidão do vasto céu, examina a própria epiderme e encontra a mansidão titular do autoconhecimento. Estando no "vasto chão", este procedimento alça Gal Costa ao posto de neo-sereia, acordando algumas notas no violão, que canta o ouvinte – pequeno-grande, semelhante a ela.
Cantar, aqui, "é ter o coração daquilo" que inverte com ganhos para quem canta e para quem ouve as posições "vasto chão/vasto céu". Cantar, aqui, na voz de Gal Costa, é encontrar um lugar no mundo. Um espaço entre o verme e a estrela, como está no poema de Pedro Kilkerry. Um ponto equidistante entre o céu e o chão. Nada tem começo, nada tem fim. "Minha voz, minha vida", canta Gal. "Não foi só ontem, é hoje e depois", canta Tatit. "Tão largo o céu / Tão largo o mar / Tão curta a vida", canta Marisa Monte. E o ordinário é lançado para um lugar primordial, que, se nunca existiu de fato, é modelo onírico.

***

Mansidão
(Caetano Veloso)

Vasto céu, diminuta luz estelar brilha entre as nuvens
Esta voz que o cantar me deu é uma festa paz em mim
Violão deita em minha mão, acordar algumas notas
Colocar com exatidão na sombra o clarão sem fim

Um amor que já me fez chorar agora não fará, não sofro mais assim
Pois está tudo onde deve estar, nada será ruim
Mansidão, luminosa paz, minha voz e aquela estrela
Vasto chão, sensação feliz, seda, linho, lã, cetim