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04 setembro 2014

Retrato da vida



Num país solar, tropical, o período das chuvas é sempre sinônimo de reclusão, de recuo interior, de ficar em casa, de amar em segredo, de cantar oitavas abaixo. É isso que o sujeito da canção “Retrato da vida” de Dominguinhos e Djavan faz. “Esse matagal sem fim / Essa estrada, esse rio seco / Essa dor que mora em mim / Não descansa e nem dorme cedo // O retrato da minha vida / É amar em segredo”, diz.
A vereda de onde canta o sujeito de “Retrato da vida” está mais próxima do sertão de Guimarães Rosa de que do sertão de Graciliano Ramos. Justapõe “matagal sem fim” e “rio seco”, a fim de encenar ao mesmo tempo a esperança e o atual estado de solidão, em que o outro “não quer saber de mim / e eu vivendo da tua vida”. O sertão do sujeito da canção é úmido, tem esperança no verde novo da “boa colheita” que ele acredita está por vir.
Gravada por Djavan no disco Bicho solto (1998) e por Mariene de Castro em Colheita (2014), nas duas versões temos o uso da passionalização. Ou seja, dos tons baixos, do prolongamento das vogais, da continuidade melódica, na intenção de modalizar o percurso do estado da paixão presente na letra. As tensões internas do sujeito lírico são transferidas para a voz que canta lenta e continuadamente. À exceção da derradeira estrofe, quando o sujeito cancional é tomado pela esperança e canta uma oitava acima: “O teu beijo em meu destino / Era tudo o que eu queria / Ser teu homem, teu menino / O ser amado de todo dia”. O reduto emotivo da inter-subjetividade dá lugar à vontade de ter o outro “aqui”, oscilando a tessitura da canção, da voz dos intérpretes.
Esse gesto do plano da letra interferindo no plano da voz importa para pensarmos a cena apresentada pelo sujeito da canção. A última estrofe cantada uma oitava acima é quase uma exasperação que não chega a se configurar, já que ele não quer interferir no ciclo que se mostra anunciando a presença futura do ser amado.
“Retrato da vida” é uma canção de maio: “Esses campos não tardam em florir”. O ciclo da colheita que recompensará “a dor que mora em mim” está próximo. As noites frias de junho, a festa do milho verde, o aconchego em torno da fogueira beneficiará os amantes, em especial, o sujeito que canta esperançoso. A voz de Mariene de Castro, por exemplo, é acompanhada por uma sanfona melancólica, ajudando a retratar a vida do sujeito, uma vida que depende da vida do outro: “Deus no céu e você aqui”.
No plano da intertextualidade, “Retrato da vida” dialoga com “Deusa da minha rua”, de Newton Teixeira e Jorge Faraj. Enquanto aquela pergunta: “Mas e você o que faz / Que não repara no chão / Por onde tem que passar / E pisa em meu coração?”; essa diz: “Minha rua é sem graça / Mas quando por ela passa / Seu vulto que me seduz / A ruazinha modesta é uma paisagem de festa / É uma cascata de luz / Na rua uma poça d'água, espelho da minha mágoa / Transporta o céu para o chão”. Temos nas duas canções uma narratividade ancorada na voz de um sujeito dependente e resignado (“E tudo parece seguir / Fazendo a vida tão direita”). Organizadora do sentido global do texto, a narrativa tem sua função efetivada no gesto da inter-subjetividade mimética, no modo como Mariene e Djavan registram a canção, já que “Retrato da vida” e “Deusa da minha rua” são serestas, repletas de passagens que, cantando a paisagem, cantam o estado interno do sujeito.
A lírica do amor romântico normatiza e universaliza a mensagem da canção. O conteúdo afetivo da letra investe na disjunção entre o sujeito da canção (enunciador) e o outro (objeto de desejo). A “dor que mora em mim” une um ao outro. Tudo ocorre como se, pela narrativa bem circunscrita, o sujeito aproximasse a colheita. E o fragmento do ciclo da existência, o “retrato da vida” apresentado no título, é traduzido na sensibilidade dos intérpretes da canção.

***

Retrato da Vida
(Dominguinhos / Djavan)

Esse matagal sem fim
Essa estrada, esse rio seco
Essa dor que mora em mim
Não descansa e nem dorme cedo

O retrato da minha vida
É amar em segredo

Não quer saber de mim
E eu vivendo da tua vida
Deus no céu e você aqui
A esperança é quem me abriga

Esses campos não tardam em florir
Já se espera uma boa colheita
E tudo parece seguir
Fazendo a vida tão direita

Mas e você o que faz
Que não repara no chão
Por onde tem que passar
E pisa em meu coração?

O teu beijo em meu destino
Era tudo o que eu queria
Ser teu homem, teu menino
O ser amado de todo dia

Um comentário:

Unknown disse...

Vejo retratado nessa música,o sertanejo de Euclides da Cunha,"... é ante de tudo um forte" de tanto amor, suporta um sofrimento de seca, fome e perdas,que nos parece eterno, mas lhe basta o campo florir, e sua vida se torna terna.