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10 outubro 2014

Desencantamento tóxico



Pelo menos desde Platão, somos educados a reconhecer um tipo aceitável de audição. A música nova desestabiliza a lei e precisa ser evitada. Resistir ao novo tornou-se tarefa para os protetores e conservadores (responsáveis pela educação do guardião-cão) da cidade ideal, ordenada, organizada, justa. Platão reconhece o poder e a nocividade da arte. A música de muitos acordes provoca desejos inapropriados ao guardião. O risco está no homem ser demasiadamente humano.
Tomando a justiça por uma modelagem que ajusta o cidadão à cidade, Platão determina que o modo de expressão e a palavra dependem do caráter da alma, submetendo a música (a arte das Musas) à palavra. Logo, o teatro ao diálogo. Platão exalta o belo e define as virtudes: sapiência, coragem, sensatez, justiça. Ora, o mais belo é o mais desejável. Cabe ao feio, ao desmedido, à inconstância, à physis serem expulsos da cidade ideal.
Isso atravessa o nosso "gosto" artístico ainda hoje. Aliás, como se gosto e arte tivessem algo em comum. Aparece em nossos modos de resistência a tudo que nubla o "bom gosto", a harmonia até então supostamente estabelecida pelos padrões do "homem do bem" (representante do bem). A música polifônica e as vanguardas sonoras, por exemplo, desestabilizam certezas sobre aquilo que aprendemos ser música, quando não, pior: "a boa música". Se o sujeito está no desejo particular, e não foi possível expulsar (continuamos tentamos) os artistas de nosso convívio, cabe às forças de proteção e conservação estabelecerem regras rígidas para essa convivência. A ideia de refinamento, de qualidade coopta os saberes e desejos particulares: tipifica, retira o rosto do ouvinte.
Ouço o disco Ilhas de calor de Negro Leo como uma exaltação ao contrário de tudo isso. A voz indomável, os acordes dissonantes, os sujeitos loucos, as estruturas sociais tiranas denunciadas são um elogio à physis, à natureza humana. A cólera que Platão reconhece apenas como atributo dos deuses é incorporada nos sujeitos cancionais criados por Negro Leo - sujeitos que são "o próprio vício-pessoa", como diria Álvaro de Campos.
O disco é uma rede complexa de fragmentos, versos-denúncias, versos-acusações, versos-líricos, temas circulares. Listas aleatórias de sensações e de impressões marcam as estruturas formais das letras e interferem na enunciação vocal. Assumo aqui o risco de extrair uma canção do todo artístico: "Desencantamento tóxico", de Thomas Harres, Felipe Zenícola, Eduardo Manso e Negro Leo.
O sujeito que berra, grita e canta nessa canção experimenta sensações e se vicia na existência: "Tóxico de todo santo dia". Na contramão do guardião platônico, mais do que querer conviver na cidade, ele traz os dilemas da cidade na voz, nos gestos vocoperformáticos. Ou seja, o sujeito cancional de "Desencantamento tóxico" é o duplo, o outro do guardião imaginado por Platão. É o duplo porque assume o poder ficcionalizante da razão - ao denunciar, por exemplo, "Nelson Mandela morreu / Monotonia das celebridades" - e nega a beleza de raciocínio, já que trabalha com gestos cancionais caóticos.
As imagens criadas estão sempre em choque entre si. Do mesmo modo que estão em crise os acompanhamentos instrumentais: a bateria de Thomas Harres, o baixo de Felipe Zenícola, a guitarra de Eduardo Manso e a voz de Negro Leo. O resultado presentifica a falência de nossos modelos de cidade, de vida urbana: "Meninos / Pretos / Protestantes / No contra-luz do carro alegórico / Polícia no meio-dia". E não seria o Brasil o arquipélago dessas ilhas de calor?
A destemperança vocal de Negro Leo anuncia que a justiça está corrompida por quereres individualistas e não se ajusta mais igualmente a todos. Os ritmos variados e as harmonias perturbadoras são a tradução da doença do corpo e da alma do sujeito cancional aqui anunciado. A música aqui não acaba no amor do belo. O sujeito imita a cidade e o horror que ela produz ao exigir a ordenação, a capacidade discursiva. Em reposta, no lugar da cidade ele ergue e instaura os desejos - sexo, fome, festa, grito, máscara - multiplicando-se, para se sentir, para sentir tudo, extravasando. 

***

Desencantamento Tóxico
(Thomas Harres / Felipe Zenícola / Eduardo Manso / Negro Leo)

Terror adventício em escorpião
Morte em marte
Vida extrínseca
Cólera da crença

Baratas na viação
Porra! Flagelo de padres

Nelson Mandela morreu
Monotonia das celebridades
Prece da aceleração
Meninos
Pretos
Protestantes
No contra-luz do carro alegórico
Polícia no meio-dia
Tóxico de todo santo dia

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