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28 novembro 2014

Tupi fusão



De um trono-espelho no centro do palco, Ney Matogrosso aparece: imperativo, emplumado, cigano, atento aos sinais, como sempre, amante da sorte. Flashes de luz e câmeras fragmentam a imagem, nublam a visão da potência-ó em cena. A imagem pede passagem: “A cidade é tanto do mendigo quanto do policial / (...) / Todo mundo tem direito à vida / Todo mundo tem direito igual / Travesti trabalhador turista / Solitário família casal” (“Rua da passagem”, Arnaldo Antunes e Lenine). E é assim, sem levantar bandeiras individuais, mas disposto na vigília pelos direitos coletivos de respeitabilidade mútua, que Ney Matogrosso faz do corpo e da voz instrumentos contra a hipocrisia social.
Desde sempre, a canção popular brasileira tem o árduo trabalho de ser o espelho por onde a diversidade cultural se mira, onde o tabu vira totem. “A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu”, anotaria Oswald de Andrade. “No espelho minh’alma chora / Lá fora está tão gelado / Sozinha nesta cozinha / Em pé eu tomo um café / Na pia a louça suja / Me lembra da roupa suja / No tanque que a vida é” (“Noite torta”, Itamar Assumpção), canta Matogrosso. Remelexendo-se criticamente em cena, via instinto caraíba, Ney desvela uma série de sutilezas “que a brisa do Brasil beija e balança” e aponta o “incêndio nas ruas / lixo na porta e na escada / sangue em cada esquina mal dobrada” (“Incêndio”, Pedro Luís).
então alguma coisa como canto sai de alguma coisa como boca, alguma coisa como um á, um ó, um ó enorme, que toma primeiro os ouvidos e depois se estende pelas costas, a penugem do ventre”, as palavras de Nuno Ramos – Livro Ó – me servem para entrar em contato com a pintura abstrata da figura em cena. A vocoperformance de Ney Matogrosso é inaugural de novas/outras estruturas críticas. E sintomática de um país que realiza a própria crítica no jeito de corpo misturado de seu povo: profundamente afinado com as ideias de antropofagia. Corpo político. Voz engajada. Ambos amalgamados, indissociáveis a serviço do despertar do emblema Brasil, pelo sinuoso tecido de fios semióticos exóticos de tão óbvios.
Do centro da certeza da brevidade da vida, Ney entoa alto: “Vida louca vida / Vida breve / Já que eu não posso te levar / Quero que você me leve / Tô cansado de tanta babaquice, tanta caretice / Desta eterna falta do que falar” (“Vida louca vida”, Lobão e Bernardo Vilhena). Agradece os aplausos, gritos e ais. E lascivamente muda de roupa. Ali. Pele sobre pele. Pele por pele. Diante da plateia que se realiza através do gesto do artista em cena. “Meu samba não se importa se eu não faço rima / Se pego na viola e ela desafina / Meu samba não se importa se eu não tenho amor / Se dou meu coração assim sem disciplina” (“Roendo as unhas”, Paulinho da Viola), canta, como o artista-pensador da cultura que é. “De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’, ante a notícia de que o ‘velho Deus morreu’ nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa [...] novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento”, anota Nietzsche em A gaia ciência.
Ney Matogrosso mistura canções, estilos, ritmos. Paulinho da Viola e Criolo; Caetano Veloso e Lobão; Arnaldo Antunes e Vitor Ramil. Ele sobrepõe temas para chegar ao grande-tema: o amor ao destino. “Eu sei / O tempo é o meu lugar / O tempo é minha casa / A casa é onde quero estar / Eu sei” (“A ilusão da casa”, Vítor Ramil), canta. Depois entoa uma oração que se opõe a qualquer atitude segregacionista: “Peço aos céus para me protegerem e eu não hei de ceder / Ao vazio desses dias iguais / Mal em mim nunca há de fincar / Mel em mim nunca há de findar / Olhos nus e atentos aos sinais / Faço fé pra poder ver / A vida há de ser sempre mais” (“Oração”, Dani Black). E isso não é pouco diante do levante neopentecostal que tem visado a “assepsia” dos brasileiros.
Sobre o tema, Ney Matogrosso sugere cantando: “No meu coração da mata gritou Pelé, Pelé / Faz força com o pé na África / O certo é ser gente linda e cantar, cantar, cantar / O certo é fazendo música / A força vem dessa pedra que canta Itapoã / Fala tupi, fala iorubá” (“Two naira fifty kobo”, Caetano Veloso). E “No verso aversão à imposição / Servo, sou não, faço a exposição / Sobre condicionamento e catequização / Pobre estamento, mais injusta divisão / Nobres no convés e os negros no porão / Conte de um até dez e prenda a respiração / Quem controla o passado tem o futuro à mão / Conheça sua História, não durma, irmão / Fique esperto, liberto de qualquer exploração / Mais perto do certo, andar com atenção / Antropofagia pra fugir da tensão / Sardinha no cardápio pra fazer a digestão / Como não? Como sim, é apropriação / Nossa risada no fim tem mais sensação / A resistência é a própria ação / A hora da virada é a nossa sanção” (“Tupi fusão”, Vitor Pirralho). “Tupi fusão”, aliás, é o núcleo do show.
Atento aos sinais ao vivo (2014) é um manifesto que não se limita a dar respostas. Há muito amor à vida, para se reduzir a isso. “Bichos bichas punk anjos querubins / Iansã deus tupã eu tudo enfim / Peter-Pan pó de pirlimpimpim / Também isso não vai ficar assim, meu bem / Isso não vai ficar assim / Por isso beije-me / Como se fosse esta noite a última vez” (“Isso não vai ficar assim”, Itamar Assumpção), canta o menino no palco. E ainda: “No amor eu quero me afogar / Se for contigo eu quero entrar nesse mar / Tanto calor que surge em te abraçar / Mas esse fogo é fogo bom pra se queimar / Mas esse fogo é fogo bom” (“Não consigo”, Rafael Rocha). E provoca: “Você nem imagina tudo que imaginei pra nossa rotina / (...) / Dia sim, dia não essa fome divina” (“Beijos de Ímã”, de Jerry Espíndola, Alzira E, Arruda e Ney Matogrosso). E Convida: “A confeiteira e seus doces / Sempre vem oferecer / Furta-cor de prazer / E não há como negar / Que o prato a se ofertar / Não a faça salivar” (“Freguês da meia noite”, Criolo). E avisa: “Espero ouvir você dizer que gosta de viver em perigo / Considerando que eu não seja nada mais além de bandido” (“Fico louco”, Itamar Assumpção). E sublima: “Ninguém vai nos entender / Querem se escandalizar / Até preferem fingir / Até preferem matar / Até preferem morrer / Do que ter de aceitar / Que no mundo somos / Eu e você” (“Pronomes”, de Beto Boing e Paulo Passos). E mira: “Essa é minha situação / Eu quero sua atenção / E já fiz, imagino, até onde eu podia / Eu penso até em desistir / O que eu posso fazer é ir / Não possuo tamanha tecnologia” (“Samba do blackberry”, de Rafael Rocha e Alberto Continentino).
Em cena, Ney Matogrosso é a potência-ó da tupi fusão.

***
 
Tupi fusão
(Vitor Pirralho)

VITOR PI
VIM EM TUPI
PRA ENTUPIR DE IDEIA
A CABEÇA DE TODA TRUPE

Em tupi, entupiu
Canibal deglutiu
Tio samba aglutinou
Tu que viu, viu
Quem viu, quem degustou
Gostou do que sentiu
Digeriu, arrotou
Canja de laranja, casca de galinha
Isca de polícia, farda de sardinha
A carapuça serviu
A batina caiu
Bloco carnavalesco, pitoresco Brasil

VITOR PI
VIM EM TUPI
PRA ENTUPIR DE IDEIA
A CABEÇA DE TODA TRUPE

Pintura rupestre, tinta nanquim
Índio nordeste, tupiniquim
Camisa da Levi’s e calça jeans
No lugar de flecha, bala e fuzis
Sequestro do chefe da fundação
Na mesma língua, sem confusão
Na mesma moeda, a negociação
Capital estrangeiro, pajé, capitão
Pé d’água, toró, como chovia
De português, o tupi se vestia
Se fosse no sol, tu se despia
E dispensaria a hierarquia

VITOR PI
VIM EM TUPI
PRA ENTUPIR DE IDEIA
A CABEÇA DE TODA TRUPE

No verso aversão à imposição
Servo, sou não, faço a exposição
Sobre condicionamento e catequização
Pobre estamento, mais injusta divisão
Nobres no convés e os negros no porão
Conte de um até dez e prenda a respiração
Quem controla o passado tem o futuro à mão
Conheça sua História, não durma, irmão
Fique esperto, liberto de qualquer exploração
Mais perto do certo, andar com atenção
Antropofagia pra fugir da tensão
Sardinha no cardápio pra fazer a digestão
Como não? Como sim, é apropriação
Nossa risada no fim tem mais sensação
A resistência é a própria ação
A hora da virada é a nossa sanção

VITOR PI
VIM EM TUPI
PRA ENTUPIR DE IDEIA
A CABEÇA DE TODA TRUPE

Vitor Pi, vim em tupi, pra entupir de ideia a cabeça de toda trupe
Vitor Pi, versão tupi, pra entupir de ideia a cabeça de toda trupe

13 novembro 2014

Convoque seu buda



“Os vaga-lumes desapareceram? Certamente não. Alguns estão bem perto de nós, eles nos roçam na escuridão; outros partiram para além do horizonte, tentando reformar em outro lugar sua comunidade, sua minoria, seu desejo partilhado”. São com essas palavras que Georges Didi-Huberman encaminha o encerramento do seu livro Sobrevivência dos vaga-lumes.
Antes, o autor escreve que “o ‘verdadeiro fascismo’ é aquele que tem por alvo os valores, as almas, as linguagens, os gestos, os corpos do povo. É aquele que ‘conduz, sem carrascos nem execuções em massa, à supressão de grandes porções da própria sociedade’, e é por isso que é preciso chamar de genocídio ‘essa assimilação (total) ao modo e à qualidade de vida da burguesia”.
Didi-Huberman está analisando “o poder específico das culturas populares, para reconhecer nelas uma verdadeira capacidade de resistência histórica, logo, política, em sua vocação antropológica para a sobrevivência”. Reconheço semelhante gesto em alguns rappers brasileiros, a saber, entre outros: Mano Brown, Emicida e Criolo.
Ouço Criolo como um vaga-lume antropófago, contemporâneo, deglutindo as inúmeras referências da cultura brasileira e mundial. As canções do disco Convoque seu Buda (2014) são tão autônomas quanto dependentes na montagem abstrata, via deslocamentos, dessa cultura. Os sujeitos cancionais criados são vaga-lumes que sobrepõem tradição e contradição.
A rede de citações, reminiscências e referências a textos extra cancionais aponta a inquietação de Criolo com a existência. E “o que mais pedir a um filósofo senão inquietar seu tempo, pelo fato de ter ele próprio uma relação inquieta tanto com sua história quanto com seu presente?”, pergunta Didi-Huberman.
Dos jogos sonoros aos elementos da sociedade do espetáculo, passando por referências religiosas, nos exemplos a seguir, podemos identificar os alicerces contraditórios, e, por isso, brasileiros, da cultura trabalhada por Criolo: “Nin-Jitsu, Oxalá, Capoeira, Jiu-Jitsu / Shiva, Ganesh, Zé Pilintra e Equilíbrio” (“Convoque seu Buda”); “Rap é forte, pode crer, Ui monsieur / Perrenoud, Piaget, Sabotá, enchanted” (“Esquiva da esgrima”) “Temos de galão Dom Perignon / Veuve Clicquot pra lavar suas mãos / E pra seu cachorro de estimação / Garantimos um potinho com pouco de Chandon” (“Cartão de visita”); “Alô, Foucault, cê quer saber o que é loucura? / É ver Hobsbawm na mão dos boy, Maquiavel nessa leitura” (“Duas de cinco”); “Fetiche de playboy é colar com Barrabás” (“Fio de prumo”).
Mas a complexidade das citações não se limita aos textos das canções. Notem-se também as sobreposições sonoras. Por exemplo, podemos perceber a criação de outros objetos melódicos, na textura de “Esquiva da esgrima” - maracatu, rap, capoeira em amálgama - , bem como na mistura de percussão de samba com levada de guitarra elétrica (“Fermento pra massa”).
Aliada a isso, adensando o emaranhado de fios-signos, há a voz de Criolo. Para cada canção uma entonação, um modo de dizer, uma performance, um gesto vocal à procura da batida perfeita do fazer cancional.
A voco-performance de Criolo – canto/falado, fala/cantada – equilibra-se entre o épico e o trágico, ou seja, entre a voz do povo de um lugar e a subjetividade. Esse jogo entre local e universal amplia e potencializa a presença dos sujeitos cancionais: “Verso mínimo, lírico de um universo onírico” (“Esquiva da esgrima”). Sem contar com a ironia utilizada na performance vocal de “Cartão de visita” adensando o esnobismo burguês apresentado na letra, por exemplo. “A questão dos vaga-lumes seria, então, antes de tudo, política e histórica”, escreve Didi-Huberman.
Por sua vez, a contundente beleza terrível de “Casa de papelão”, canção que aborda frontalmente o horror do crack e da falta de moradia, é exemplo disso: “Olhos nos olhos sem dar sermão / Nada na boca e no coração / Seus amigos são um cachimbo e um cão / Casa de Papelão (...) Toda pedra acaba, toda brisa passa / Toda morte chega e laça (...) Prédios vão se erguer e o glamour vai colher / Corpos na multidão”. Não à censura e sim ao olhar social dignificante, pois “Cada maloqueiro tem um saber empírico” (“Esquiva da esgrima”).
Penso ainda que “Plano de Voo” exemplifica bem o gesto antropófago de Criolo. Letra, melodia e voz se amalgamam numa narrativa falhada, numa não-narrativa. Temos aqui uma colagem, apropriações de elementos que não se adequam, mas constituem a pintura abstrata potencializadora de voos do pensar. As múltiplas imagens evocadas na letra proliferam o conteúdo do “plano de voo” condensado no título da canção.
Vale lembrar que em “Chuva ácida” (Ainda há tempo, 2006), Criolo convidou: “Vamos parar com isso, aprender sobre a coleta seletiva de lixo”; e em “Lion man” (Nó na orelha, 2011) Criolo cantou “Vamos às atividades do dia: / Lavar os copos, contar os corpos e sorrir / A essa morna rebeldia”. Agora, em “Casa de papelão”, ele convoca: “Vamos cantar pra nossos mortos / Vamos chorar pelos os que ficam / Orar por melhores dias / E se humilhar por um novo abrir”, recusando o espetáculo comercializável e exaltando a dignidade civil.
Nesse sentido, Criolo imita o caos da cidade, a caoticidade, por evocar a natureza da cidade na língua da canção, promovendo um pensamento farmacêutico daquilo que envenena. E vice-versa: “Do monstro que se constrói com ódio e rancor / A cada gota de bondade uma de maldade se dissipou” (“Plano de voo”).
Mas é em “Fio de prumo” que a antropofagia, isso que nos une socialmente, economicamente, filosoficamente, alcança a justa solução estética. Depois de uma introdução instrumental ruidosa, “Fio de prumo” abre com “Padê onã”, de Douglas Germano, na voz de Juçara Marçal. É o preparo do encerramento dos trabalhos do disco. É saudação e canto a Exu, Vodu e mensageiros da travessia e do destino. Todos juntos no padê do céu dos orixás. Nesse sentido, fio de prumo é instrumento usado na construção civil e, no caso, do cidadão – tema nodal das canções de Criolo. E fio de prumo é o bastão de Exu, orixá da comunicação, dos contatos.
Como vemos, em Convoque seu buda a ideia não substitui o sensível, a vida nua, a experiência crua. Ao contrário. “A poesia existe nos fatos”, escreveu Oswald. Criolo imita na voz a natureza das mundivivências que canta e inscreve vigor ao estilhaçar a narrativa – “Aço, peito, flecha, caminho / Magma, lava, inveja, vizinho” (“Fio de prumo”) – de seus sujeitos cancionais tiranizados pela língua e pela vida.
Criolo é vaga-lume. Afirmo isso por encontrar na sua obra-vida um “saber-vaga-lume. Saber clandestino, hieroglífico, das realidades constantemente submetidas à censura” (Didi-Huberman). Em Criolo, “as imagens sonhadas sob o terror [“A estética do mal no terror psicológico”] tornam-se então imagens produzidas sobre o terror” (idem). Criolo implode os tipos que estão na base de nossos julgamentos éticos e políticos, colocando de pé uma nova ontotipologia: “Cada coração é um universo e ainda tem que bombear o sangue”, diz. A obra de Criolo convida: Se oriente, rapaz. Se afroriente, rapaz.

***

(Criolo)

Laroyê Bará
Abra caminho dos passos
Abra caminho do olhar
Abra caminho seguro para eu passar

Laroyê Legbá Tomba o mal de joelhos
Só levantando o Ogó
Dobra a força dos braços que eu vou só

Laroyê Eleguá
Guarda Ilê, Onã, Orum
Coba xirê deste funfum
Cuida de mim que eu vou pra te saudar

Muros de concreto: infeto
De pedra, cal, cimento: dejeto
Aponta pra cabeça: Ori
A cidade um cronista: Ogi

E a dobra do dorso do operário na rua
Labirinto, fauno, sombra, luz da lua
Aço, peito, flecha, caminho
Magma, lava, inveja, vizinho
Posto de saúde dos anos 80
AAS, Benzetacil, cibalena
Vida real dessa filosofia
Máquinas comem você, meio dia

O ponteiro, o relógio, a corrida pro pódio
A estética do mal no terror psicológico
Espelho, perdão, lâmina, credo
Ocupar essa praça, honesto
A favela aguarda atenta ao revide
Manifesto vira piada, declive
Corrida clichê desagradável, Pai
Fetiche de playboy é colar com Barrabás
Todos os dias na biqueira alguém vai
Pra deixar um pouco mais a alma em stand by
O que faremos, então? Sem provocar alarde
Sepulcro mediano me mate nessa tarde

Beberemos
Nesta água, Nicodemos
Oremos
Pois vamos suar veneno

06 novembro 2014

Banca de jornal



Uma das aprendizagens mais definitivas que os estudos de poesia me proporcionaram é, através das figuras de linguagens, em especial, da metáfora, poder circular o objeto sem nomeá-lo. Isso me instiga. Poder dizer sem dizer. Mostrar sem mostrar. Os modos como o escritor, o artista trabalha a linguagem a fim de não “entregar o ouro”, de exigir a atenção do leitor. Tento levar isso para a vida. Por isso uma de minhas questões centrais atualmente é: como denunciar o absurdo da existência sem nomear os tiranos e, consequentemente, sem dar visibilidade a eles?
Creio que a arte, a poesia pode contribuir muito à política nesse sentido. É por aí que entendo quando Baudelaire diz algo como: “para ser poeta preciso falhar como homem”. É quando ele se desloca – coloca-se na travessia rosiana – do sujeito civil em direção ao sujeito poeta que ele consegue fazer a linguagem ordinária e cotidiana falhar (pane no ordenamento) e se autoquestionar através da arte.
O presente, portanto, será sempre vivido por esse afastamento doloroso do poeta em inquieta relação com a vida. Tencionar as potências e as fragilidades do desejo (vontade e impossibilidade), desse desejo direcionado ao saber, o que já é em si uma ação política, me parece, é o que define o artista moderno, no caso, Baudelaire, para ficarmos no mesmo exemplo. Mas isso pode ser expandido ao nosso tempo.
É por aí também que leio a contundente beleza terrível de um capítulo como o “Um mundo de gente”, do livro Há mundo por vir?, de Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro. Estar na travessia entre a irreversibilidade do feito e o desejo de fazer parece nos constituir.
Concluí o livro com a sensação de que urge falharmos mais como homem para podermos onçar, como no conto rosiano “Meu tio o Iauaretê”. Querer ser homem, diferenciando-nos ao máximo dos outros animais, parece, tem nos levado ao colapso. Antes tivéssemos querido ser onça. Ou jabuti.
Voltando às metáforas, ou seja, à contribuição da arte para a política, penso ainda em Platão, no uso que o filósofo faz da poesia. Platão julga Homero como um veneno, identifica o nefasto na obra homérica, mas não deixa de valorar essa obra em benefício da construção da cidade ideal, ordenada.
Ora, se toda ação política é teórica, ou seja, busca a estabilidade, cabe à arte exercitar o estar sempre no devir, naquilo que escapa; transvalorar o erro em acerto-mais-erro deleziano. Apropriar-se dos signos tiranos e fazer deles reflexão social, penso, é a difícil tarefa que se apresenta para todos nós hoje.
Um exemplo contemporâneo disso está no fato de que não à toa as mesmas mídias que criminalizam os movimentos sociais fingem surpresa diante do conservadorismo que se anuncia na política e na sociedade. Usaram os movimentos, cooptaram suas pautas. Ou pensam que cooptaram. Cabe à arte dar o troco. Desviar-se dessa ordem é tarefa do artista, do louco – esses que estão mais na travessia do que nos polos.
Penso nisso tudo enquanto ouço o novo disco de Tom Zé – Vira lata na via láctea (2014). Tom Zé é talvez o nosso maior exemplo do não envelhecimento do artista. Isso não se deve apenas ao constante contato com jovens, e sim à sua mentalidade desejante e desejada. “Não há quem cure a curiosidade da humanidade”, canta Tom.
Atento aos sinais, “antena da raça”, se em “Povo novo” Tom Zé cantou “Olha menino, / que a direita já se azeita, / querendo entrar na receita”, na canção intitulada sintomaticamente “Esquerda, grana e direita” ele cita o educador Paulo Freire: “Quando o trabalhador cresce na sociedade e tem oportunidade de ser protagonista da História – ele pratica o método do opressor porque foi o único método que aprendeu; então, ele só sabe agir como o opressor”. Denunciando o lugar de travessia conferido à grana na contemporaneidade. “Dinheiro vem tiranizar / Dinheiro quer ditadurar”, canta em “Mamon”.
Já em “Papa perdoa Tom Zé”, ironiza: “Meu coração fundamentalista / Pede socorro aos intelectuais / Pois a diferença entre esquerda e direita / Já foi muito clara, hoje não é mais”. E completa, como “a garotinha ex-tropicalista agora militando em um movimento”: “Quero civilizar o capitalismo selvagem / Quero trazer a luz pra toda ignorância / Como bem-feitora – não desejo o mal / Assim como não quis o velho amigo Cabral”.
Sobre o império das grandes corporações da mídia, Tom Zé joga com os nomes de revistas e jornais ditadores de opinião: “Veja, isto é pouca / Lenha no grande bate-boca / E ainda escrevo uma carta capital / Para os caros amigos desta banca de jornal”. A enunciação de “é pouca”, referindo-se à revista Época, é sagaz, já que logo a seguir, em verso único, temos a referência à revista Carta Capital, que estaria no lado oposto às outras três gravadas num mesmo verso.
Mas a ironia não cessa: “A formiga carrega a folha / Do estado de são paulo ao Piauí / Enquanto isso a cigarra quer ser vip / Pra sair contigo na capa da ti-ti-ti / Caras, quem pra matar”. Ou seja, tudo se resume no desejo de hiperexposição individualista. “Quem lê tanta notícia?”, perguntaria o tropicalista Caetano Veloso.
Articulando, deglutindo, ruminando signos de poder capitalista, Tom Zé tece um disco repleto de críticas costuradas pela alegria, essa “prova dos nove”, como diria o também antropófago Oswald de Andrade. Alegria transvalorada em ironia machadiana e humor tomzeniano.

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Banca de Jornal
(Tom Zé)

Veja, isto é pouca
Lenha no grande bate-boca
E ainda escrevo uma carta capital
Para os caros amigos desta banca de jornal

A formiga carrega a folha
Do estado de São Paulo ao Piauí
Enquanto isso a cigarra quer ser vip
Pra sair contigo na capa da ti-ti-ti
Caras, quem pra matar