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30 dezembro 2015

Discos de 2015


2015. Um ano riquíssimo para as nossas sonoridades: Fafá de Belém, Karina Buhr, Liniker, Aláfia, Boogarins, Tulipa Ruiz, Rodrigo Ogi, Duda Brack, Maria Gadú, Diogo Strausz, Simone Mazzer, Lira, César Lacerda, André Abujamra, Fabiana Cozza, Zé Manoel, Jussara Silveira... Entre renovações e confirmações, fez-se muita música de altíssima qualidade. Luxo só! Difícil destacar o mel do melhor. Mas eis aqui (em modo aleatório) uma pequena lista dos discos de 2015 com os quais mais convivi:

- Estado de poesia (Chico Cesar)
- O Inferno de Wall Street / Profetas em Movimento (Cid Campos)
- Pedaço duma asa (Mariana Aydar)
- Ava Patrya Yndia Yracema (Ava Rocha)
- Eu vou fazer uma macumba pra te amarrar, maldito (Johnny Hooker)
- Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa (Emicida)
- Soledade (Cida Moreira)
- Blam blam (Jonas Sá)
- Anganga (Juçara Marçal e Cadu Tenorio)
- A mulher do fim do mundo (Elza Soares)
- Carbono (Lenine)
- De baile solto (Siba)
- Estratosférica (Gal Costa)
- Amarelo (Bruno Cosentino)
- Conversas com Toshiro (Rodrigo Campos)
- Violar (Instituto)

11 dezembro 2015

Mulher do fim do mundo



“A mulher do fim do mundo / Dá de comer às roseiras, / Dá de beber às estátuas, / Dá de sonhar aos poetas. // A mulher do fim do mundo / Chama a luz com assobio, / Faz a virgem virar pedra, / Cura a tempestade, / Desvia o curso dos sonhos, / Escreve cartas aos rios, / Me puxa do sono eterno / Para os seus braços que cantam” (Murilo Mendes, “Metade pássaro”, 1941).
Lendo esse poema de Murilo Mendes e ouvindo o novo disco de Elza Soares, lembramos das palavras de Octavio Paz em O arco e a lira: “Poesia e religião são revelação. Mas a palavra poética não precisa da autorização divina. A imagem se sustenta sozinha, sem necessidade de recorrer à demonstração racional nem à instância de um poder sobrenatural: é a revelação de si mesmo que o homem faz a si mesmo”. O sujeito poético de Murilo Mendes antecede e antever a mulher do fim do mundo que Elza Soares é. O poema de 1941 revela a mulher de 2015, numa dessas torções temporais que só a arte consegue promover.
Há canções que parecem que só podem ser entoadas por determinadas vozes. A essas canções, essas vozes conferem legitimidade. Ou autoridade, para usar o termo usado por Paz. Seja ao sujeito da canção - à mensagem da letra -, seja ao sujeito cancional - ao ser que surge na frente do ouvinte durante a audição daquela canção entoada daquele modo por aquela voz (daquele alguém cancionista).
O ano de 2015 gerou duas dessas canções: “Átimo de som”, composta por Zé Miguel Wisnik e Arnaldo Antunes e gravada por Gal Costa no disco Estratosférica, e “Mulher do fim do mundo”, composta por Romulo Fróes e Alice Coutinho e gravada por Elza Soares em A mulher do fim do mundo. Que outra voz pode dizer, do modo como diz, que “um átimo de som / num átomo de ar / pode ser capaz de disparar / o que sente o pensamento / o que pensa a sensação / antes mesmo de virar canção”, senão a voz de Gal Costa? Que outra voz pode dizer “na chuva de confetes deixo a minha dor / na avenida deixei lá / a pele preta e a minha voz / (...) / mulher do fim do mundo / eu sou / eu vou / até o fim / cantar”, senão a voz de Elza Soares?
Elza é a mulher do fim do mundo profetizada e revelada na poesia de Murilo Mendes. A presença de Elza “tem por bandeira um pedaço de sangue / onde flui a correnteza do canal do mangue”, como diz “Coração do mar”, poema de Oswald de Andrade, cantado à capela por Elza Soares na abertura do disco. “É o navio humano, quente, negreiro do mangue / é o navio humano, quente, guerreiro do mangue”, completa o poema do poeta antropófago.
Em seguida entram o instrumental e a narrativa estilhaçada da canção “Mulher do fim do mundo”. Como se a cada piscar de olhos, a cada esquina essa mulher encontrasse um novo e desconcertante significante - “Pirata e super homem cantam o calor / Um peixe amarelo beija minha mão / As asas de um anjo soltas pelo chão”. A mulher que canta e chora Lupicínio Rodrigues caminha na avenida em dia de carnaval, revirando os resíduos da festa e revelando o trágico para além da máscara. A voz de Elza Soares humaniza o ouvinte cujas máscaras sociais querem esconder a dor, o hedonismo e a hipocrisia, típicas do humano dito contemporâneo e, mesmo, moderno.
Se, como escreveu Octávio Paz, “a poesia não é um juízo nem uma interpretação da existência humana”, a palavra cantada em Elza Soares contra interpreta-se revelando criticamente o genocídio (de negros) e o feminicídio naturalizados na cultura brasileira. A vocoperformance de Elza Soares recria o sujeito criado pelos compositores, ao inserir a cantora no conteúdo. Ou melhor: sua forma de cantar é conteúdo, porque forma é conteúdo e a artista-humana sabe disso. O que ela canta é vida, porque é arte, é invenção maturada no/do ser.
Podemos utilizar o conceito de palimpsesto para tratar da voz de Elza Soares. As várias camadas de tempo, raspadas para dar lugar a outros tempos (passado, presente e futuro), do pergaminho servem de metáfora e metonímia à performance vocal. E podem ser percebidas na condensação plena de arranhões da voz de Elza Soares. Porém, diferente do papiro que perdia a informação antiga para dar lugar à informação nova, Elza não apaga o antigo. Sua voz aglutina e deixa tudo à mostra, à audição do ouvinte. Sua capacidade de reutilização do suporte dá vida a seres que não medem esforços para cantar.
Nesse sentido, podemos dizer que Elza raspa a história, sobrepõe significantes sonoros ao tempo e reinventa-se como pessoa e como cantora. Se é que uma está apartada da outra. E faz isso conectada com as novas sonoridades, com as pesquisas de cancionistas que aprenderam muito com ela. Isso é estar aberta à vida: aprender com aqueles que com ela aprendeu. Afinal, “a mulher do fim do mundo / dá de sonhar aos poetas”, escreveu Murilo Mendes.
Tudo dói. E Elza termina o disco evocando a mãe. Elza sabe que faz parte de uma história que começou há muito tempo e que continua e persistirá tiranizando toda a existência: “É o navio humano, quente, negreiro do mangue / é o navio humano, quente, guerreiro do mangue”. Elza Soares é um ser cantante a nos tirar do sono eterno, do conforto dominical, é sereia do mangue a ameaçar: “cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Dura na queda, ela dá a volta por cima, devora a dor, faz da dor o motor da luz e vai cantar até o fim: “Lá, lá, lá / lá, lá, lá”.

***

Mulher do fim do mundo
(Romulo Fróes / Alice Coutinho)

Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de samba na ponta dos pés
A multidão avança como vendaval
Me joga na avenida que não sei qual é
Pirata e super homem cantam o calor
Um peixe amarelo beija minha mão
As asas de um anjo soltas pelo chão
Na chuva de confetes deixo a minha dor

Na avenida deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do

Resto
Dessa
Vida
Na avenida
Dura
Até
O fim

Mulher
Do fim
Do mundo
Eu sou
Eu vou
Até o fim
Cantar

09 outubro 2015

Música contra o fim da música



Num ano em que temos, entre outros tantos exemplos do vigor da música brasileira, da sereia do mangue Elza Soares, aquela que vai cantar até o fim, à selvática Karina Buhr, passando pela Gal Costa sem medo nem esperança, pelo “barulho feio” de Mariana Aydar (a gente no meio), pela soledade de Cida Moreira, pela patrya yndia de Ava Rocha, pela mama kalunga de Virginia Rodrigues e pelo canto a Atôtô do Metá Metá; sem contar o rá de Ogi, o canto de Danilo a Dorival, os niños heroes de Negro Leo, as conversas com toshiro de Rodrigo Campos, a macumba de Johnny Hooker, o estado de poesia de Chico Cesar, o baile solto de Siba, o carbono de Lenine, o blam blam de Jonas Sá... (a lista é ampla e múltipla)... escrever que a música chegou ao fim, que não tem mais papel relevante, é algo que nem mereceria comentários. Mas é por demais forte simbolicamente para eu não me abalar.
Repisar a mal interpretada afirmação de Chico Buarque sobre o “fim da canção” - Chico falava, com lucidez, de um certo modo de fazer e consumir canção no Brasil - é, no mínimo, querer provocar um frisson cafona na leitura do diário matinal. Para não me estender, evoco a afirmação do mestre Luiz Tatit a respeito do tema. Algo mais ou menos assim: “enquanto houver humano, haverá canção”. E música. E isso já deveria dizer tudo. E diz. Mas a gente gosta de polêmica, o mercado precisa da polêmica. O espetáculo precisa continuar.
No atual momento de descentralização das produções culturais, os complexos mecanismos de legitimação do artístico não passam mais pelos caducos sistemas. E os sistemas se ressentem disso. Como pesquisador, bem sei que dar conta da criação estilhaçada em torno da canção brasileira é mesmo tarefa sisífica. É bem mais fácil negar tudo e dizer que a música chegou ao fim. Assim faz a TV, por exemplo, com suas trilhas sonoras repletas de “roupas novas” para “canções velhas”, ou seja, já devidamente testadas e aprovadas pelo consumidor. O rádio segue o mesmo ritmo.
A questão é que não há mais UMA ideologia cultural a ser musicada. Se é que já existiu. As ideias de horizontalidade e polifonia (finalmente) caracterizam nossa nacionalidade. Penso que a música continua a ser a linha de frente do debate cultural. Porém, encontrando-se com parceiras de outras linguagens, agregadas a ela pelo menos desde a tropicália, passando pelo manguebeat, pelo funk carioca e rap paulista, além do tecnobrega paraense, (para ficar no exemplo de alguns dos grandes movimentos), a música não é mais (apenas) grito de alerta. A música é coletivos, é colaborativa. Basta ir a qualquer atividade “de rua” para ver, ou melhor, ouvir: a música está lá – quente, ritmando, forjando-se. "Ouça como canta louve como conta prove como dança", sugeriu Haroldo de Campos em suas Galáxias. A música aceitou o desafio. E a canção.
Querer uma música (ou uma canção) que represente o nacional no atual estado de subjetividades é uma querência, no mínimo, pueril. Como distinguir a margem do centro hoje? Margem é quem vende pouco? É quem não aparece na TV? Centro é quem vende muito? Quem lota estádios? Portanto, mantemos a perspectiva do mercado para pensar a arte e os afetos? Emicida está aí problematizando a tal “inserção social”.
Oswald de Andrade anotou no manifesto antropófago: “Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros”. É por aí que passa a construção do espaço social hoje. Parece que a música entendeu muito bem que uma reconciliação das populações como uma "identidade nacional" é inviável. “Brasil, braseiro de rosas”, escreveu Sousândrade. Constantes globais? Qual o quê? Passamos de povo à multidão. E a multidão é a aglomeração (barulhenta) de individualidades. Nega-se a ideia de massa e do apagamento das diferentes em benefício de um “bem comum”; e afirma-se o cartaz pessoal e intransferível, o choque multicolorido das diferenças. Ao preservar as especificidades micro-coletivas internas à multidão, a atual música brasileira dá vigor à diversidade macro-coletiva do povo novo. Bem como à nossa imagem de país, de sociedade e de afetos.
Querer resgatar as imprescindíveis imagens de Villa-Lobos e Mário de Andrade como argumento é, no mínimo, falta de informação. Afinal, grande parte dos cancionistas aqui citados é ouvinte-leitora desses mestres da ideia de nacionalidade. Cabe lembrar que o próprio Mário preferia trabalhar o termo "entidade", no lugar de "identidade", para pensar o país. Ouça quem tiver ouvidos para ouvir. Estão lá, na música atual: as culturas marginais (folclóricas?) e a pesquisa instrumental. Mas está tudo tão devidamente e esteticamente (antropofagicamente) trabalhado e disseminado que dá mesmo muito trabalho de ouvir.
Não vou me dar à labuta de discutir a indistinção entre popular e erudito. Aliás, note-se que usei os termos canção e música de forma propositalmente misturada também. Agora, dê-me licença, que vou ali ouvir o “Anganga” de Juçara Marçal e Cadu Tenório.

04 setembro 2015

Museu


Na letra de “Museu”, Chico César (Estado de poesia, 2015) relaciona e amalgama as musas contemporâneas a fim de afirmar um sujeito-museu. Os versos iniciais – “Musa eu sou seu museu” – indicam a apropriação musal feita pelo sujeito. E seu desejo de ser visitado pela Musa.
Se com seus Parangolés, “antiarte por excelência”, o artista plástico Hélio Oiticica liberou as cores da parede, deixando-as tomar conta do ar no corpo de quem as veste, Chico César libera a Musa da clausura que os museus se transformaram: lugar do seguro, da conservação, da memória envelhecida. Em oposição a isso ele canta um “museu da mordida no lábio inferior / da língua solta / do verbo encarnado transcolor”.
Aliás, foi também Hélio Oiticica quem apontou que o “museu é o mundo, é a experiência cotidiana”, e sendo o museu, literalmente, a “casa das musas”, o artista assume a questão moderna lançada por Oswald de Andrade no “Manifesto da Poesia Pau Brasil”: “a poesia existe nos fatos”. Desse modo, o museu passa a ser, ou volta a ser, o “jambo pendurado no jambeiro”, como canta Chico César.
“Aberto pra visitação”, o museu-sujeito criado por César se permite ser atravessado pela profusão de referências que marcam a contemporaneidade. Museu da Luz (Portugal), Museu da Pessoa (São Paulo) e Espaço Cultural (Paraíba) são espaços físicos de conservação da nossa memória artística-cultural. O sujeito da canção incorpora tais referências, mas dá um passo além. Ele é também “museu da espera, e do encantamento”. Rompe-se aqui com a visão tradicional de museu: “Musa eu sou seu museu da memória de ontem”.
Para o sujeito, em sendo esse novo modelo de museu, viver é estar na tensão entre o “calçamento ainda não pisado” e a “calçada explodindo em flor”. Esse museu não guarda, não preserva, não tem reservas técnicas. Aplicam-se os versos do poema “Guardar” (1996), de Antonio Cícero: “Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. / Em cofre não se guarda coisa alguma. / Em cofre perde-se a coisa à vista. // Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. // Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, / isto é, estar por ela ou ser por ela. // Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro / Do que um pássaro sem vôos // (...)”.
Quando fazemos do mundo o museu de tudonada, um museu vivo, abrimo-nos para ser habitados pelas musas. Numa torção temporal que faz de cada um a habitação da poesia. Nesse retorno ao arcaico do gesto poético, a poesia recupera sua potência de revelação e de ritual. O sujeito é o “espaço cultural a ser preenchido pelo beijo”. O sujeito vive em “estado de poesia”, título disco de Chico César.
As referências ao “museu do café amargo num copo grande” e do “museu do índio íntimo contemporâneo-mítico”, além de evocarem um período arcaico e mitológico, cantam fragmentos da formação cultural já que, no primeiro caso, remete o leitor-ouvinte às oferendas feitas aos pretos velhos da Umbanda – guardiões da sabedoria e do tempo – e, no segundo caso, aos donos das terras desse lugar. O resultado desses contatos é o “museu do corpo / meu corpo e o seu / e do aprendizado em outros corpos”.
"musa eu sou seu museu / da memória de ontem / do musgo / do mel / da musica sem fim museu / enfim museu do mar / do cheiro de mar / museu", canta o sujeito.
Chico César reforça o agravamento da crise do museu, daquilo que é previamente etiquetado, tombado, canonizado, entronizado, restituindo esse lugar à casa das musas. Se em “Musa híbrida” Caetano Veloso tem ímpeto de “refazer o mundo”, em “Museu” há a disposição do sujeito a serviço Musa: ele como permanente instrumento da Deusa; “do somos do som do ué”: da conjunção e do espanto – museu.
Esse indivíduo que é museu canta a mundivivência rosiana . Ele canta a “musa da música” cantada por Dante Ozzetti e Luiz Tatit: aquela que “zela / por aquela / que protela / a extinção” – “na poética pós / na genética pré”.

***

(Chico César)

musa eu sou seu museu
aberto pra visitação
museu da luz
museu da pessoa
museu da espera, e do encantamento
do calçamento ainda não pisado
da calçada explodindo em flor

musa eu sou seu museu
do jambo pendurado no jambeiro
que se sonha pássaro e balança, baloiça
museu do café amargo num copo grande
museu do corpo
meu corpo e o seu
e do aprendizado em outros corpos

musa eu
sou seu
museu

musa eu sou seu museu
da memória de ontem
do musgo
do mel
da musica sem fim museu
enfim museu do mar
do cheiro de mar
museu

espaço cultural a ser preenchido pelo beijo
fundação trêmula dos afetos acidênticos
museu da mordida no lábio inferior
da língua solta
do verbo encarnado transcolor

museu do abraço experimental
das almas atentas
antenas entre si entrelaçadas
da rede maca tipóia
museu do índio íntimo contemporâneo-mítico
museu do seu assum preto musa
do somos do som do ué
museu 

20 agosto 2015

Uma Iara / Uma perigosa Yara



Cantada como símbolo da identidade nacional pelos escritores românticos e como elemento arcaico da entidade brasileira pelos escritores dados à antropofagia, vira-e-mexe, a Iara reaparece em nosso imaginário para celebrar nossa “cor local”, nossa distinção e nossos contatos em relação ao estrangeiro.
Invenção Romântica, resultado do amalgama entre a Sereia europeia e as lendas indígenas brasileiras, cantada entre ninfeias (Olavo Bilac), ou “da podridão” (Oswald de Andrade), a Iara retorna como ícone de beleza e perigo na voz de Maria Bethânia. Ao cantar “Uma Iara” (Meus quintais, 2014), canção de Adriana Calcanhotto, Bethânia – que já cantara a Iara no disco Mar de Sophia, (2006): “Espelho virado ao céu / Espelho do mar de mim / Iara índia de mel / Dos rios que correm aqui / Rendeira da beira da terra / Com a espuma da esperança” – reafirma aquilo que já dissera em entrevista: “A voz não é minha. É das sereias”.
Essa disposição a ser um instrumento do mítico, faz com que Maria Bethânia recrie mundos e sensações para além do comezinho cotidiano. A Iara de Calcanhotto e Bethânia “dorme na vitória régia”, planta aquática típica da região amazônica e rainha dos lagos. Esse ambiente tipicamente brasileiro já distingue essa Iara das outras. A vitória régia oferece a Iara o signo necessário para torná-la definitivamente nossa.
O perigo é mantido: “Ai daquele que cai na tragédia da nudeza da sua voz / (...) / Ai daquele que cai na tragédia da nudeza do seu véu / É preciso manter a proa da margem que encerra”. O canto que é choro, ou o choro que é canto é o artifício sedutor de Iara. E isso é incorporado à letra da canção e aparece nos alongamentos vocálicos da cantora: “Ah, Ah a Iara / (...) / Uh, Uh, Uh... Iara”. Os lamentos funcionam, portanto, como recursos persuasivos. Ai de quem acreditar neles.
Ao canto da letra de Calcanhotto, Maria Bethânia agrega o recital do texto “Maio – Uma perigosa Yara” (1987), de Clarice Lispector (1920-1977). Editado por Fauzi Arap e pela própria Bethânia, o texto de Clarice serve para ilustrar os perigos e narra o caso de um tapuia que se deixou envolver pela beleza e elegância da Iara de “cabelos negros”, não mais dourados ou verdes, como noutras aparições literárias. Diz o narrador: “Houve um dia, um tapuia sonhador e arrojado / Estava pescando e esqueceu-se de que o dia estava acabando / E as águas já se amansavam / “Acho que estou tendo uma ilusão!”, pensou / A morena Iara de olhos pretos e faiscantes / Erguera-se das águas / O tapuia teve medo, mas de que adiantava fugir / Se o feitiço da flor das águas já o enovelara todo”.
Mais adiante, o narrador completa que “sempre à tardinha aparecia a morena das águas / A se enfeitar com rosas e jasmim / Porque um só noivo não lhe bastava”. Clarice não escolhe à toa o mês de maio para cantar Iara. Como sabemos, maio é o “mês das noivas”, é o mês em que as noivas encontram seus noivos em casamento. Assim como Iara: mulher insubordinada. “No mês de Maio, ela aparece ao pôr do sol / E a medida que Iara canta, mais atraídos ficam os moços”, lê Bethânia.
O encontro entre Clarice Lispector, Adriana Calcanhotto e Maria Bethânia resulta no cantar dessa Iara afirmativa do nacional sem ufanismos: interior, do Brasil profundo. Essa Iara não nega o “dom de iludir” feminino: não mais silenciado pelo patriarcado e pelo machismo, o feitiço é assumido como elemento de positividade. E se a criação poética é fruto da memória, a Iara que aparece aqui recupera, reelabora e atualiza as Iaras evidenciadas ao longo de nossa formação literária e cancional. A entidade presente nesse momento parece iluminar o percurso que a Iara fez desde os Românticos até agora: as perdas e os ganhos das características no processo de ensaiar o Brasil. Artistas leitoras, as três mulheres se unem no canto de Bethânia transmutada em Iara: Sereia e Musa.
Ao invés de negar o perigo do canto, essas mulheres artistas afirmam esse perigo como distintivo, belo e original. Plasma-se uma imagem pós-identitária para a Sereia, o feminino e a mulher: “confiante no seu encanto”. Funda-se uma Iara “espelho virado ao céu” e “morena das águas” a refletir o gesto antropófago da Guaraci oswaldiana, mas também o ímpeto trágico da Iracema alencariana. Uma não exclui a outra. Há fusão dos significantes das Iaras com /I/ e das Yaras com /Y/ em benefício de um feminismo feiticeiro, do cantar, do enredar poético-sedutor. Afinal, “de que adiantava fugir / se o feitiço da flor das águas já o enovelara todo”. Canta-se, portanto, o retorno do amalgama entre feitiço e poesia, Humano e natureza. 

***

(Adriana Calcanhotto)

Maio - A perigosa Yara
Clarice Lispector
Editado do por Fauzi Arap e Maria Bethânia

Ah, Ah a Iara... a que dorme na vitória régia
Ai daquele que cai na tragédia da nudeza da sua voz
Uh Uh Uh... Iara... a que canta, a citéria
Ai daquele que cai na tragédia da nudeza do seu véu
É preciso manter a proa da margem que encerra
Se ele é livre ou se é dela
Ah, a Iara... a que canta, a que chora...

Ao cair de todas as tardes a Iara surge de dentro das águas, magnífica
Com flores, enfeita os cabelos negros
No mês de Maio, ela aparece ao pôr do sol
E a medida que Iara canta, mais atraídos ficam os moços
Houve um dia, um tapuia sonhador e arrojado
Estava pescando e esqueceu-se de que o dia estava acabando
E as águas já se amansavam
"Acho que estou tendo uma ilusão!", pensou
A morena Iara de olhos pretos e faiscantes
Erguera-se das águas
O tapuia teve medo, mas de que adiantava fugir
Se o feitiço da flor das águas já o enovelara todo
O tapuia sofria de saudade e Iara, confiante no seu encanto, esperava
Nesse mês de florido Maio, o índio entrou de canoa no rio - o coração trêmulo
A Iara veio vindo devagar
Abriu os lábios úmidos
E cantou suave a sua vitória
Houve festa no profundo das águas
E sempre à tardinha aparecia a morena das águas
A se enfeitar com rosas e jasmim
Porque um só noivo não lhe bastava

Ah a Iara a que canta, a que chora
Uh Uh Uh Iara...