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27 abril 2015

Tango do mal



Diante do excesso de “roupas novas” para “canção velha” à disposição no mercado e da aposta naquilo que já foi devidamente testado e aprovado pelo consumidor, uma regravação só interessa à crítica e ao público não acomodado se iluminar tempos e espaços ainda não explorados nas gravações anteriores.
Uso as expressões “roupas novas” e “canção velha” propositadamente para suspender o juízo do sentido e questioná-lo. Afinal, a função de uma regravação é justamente afirmar que as canções não envelhecem quando encontram a roupagem atualizadora necessária. Atualizar, nesse caso, não quer dizer que a canção esteja defasada. O poder que as canções tem de remeter o ouvinte a tempos e espaços passados, acendendo a memória e rejuvenescendo os afetos, negaria qualquer afirmação naquela direção. Atualizar é presentificar, colocar a canção na convivência sonora de um público que não teve acesso a ela até então.
Obviamente, devido às técnicas de reprodução e arquivo dos registros sonoros, esse novo público pode fazer audições comparativas, definindo, por si, o gosto e a predileção. Bem como a crítica especializada. Desse modo, as boas gravações de uma “mesma” canção são aquelas que se complementam, que dialogam por, repito, iluminarem, cada uma, aspectos particulares da canção. É assim que uma canção jamais será a “mesma”. Ela será sempre um retorno em diferença.
Seguindo essa lógica, portanto, não há uma gravação melhor que a outra. Há complementos, encaixes. A não ser que seja apenas uma mera regravação para atender a um interesse de mercado. E isso fica evidente quando acontece. O público de canção no Brasil não é bobo. Afinal, se a canção só é canção quando do momento da execução na voz de alguém – antes disso ela “é” letra e/ou partitura –, claro está, creio, que todo cantor/intérprete é, no mínimo, co-autor da canção que apresenta. Isso num país com artistas tais como Elis Regina, Maria Bethânia e Ney Matogrosso, para ficar com alguns exemplos do cânone, cujas apropriações rasuram aquilo que entendemos por autoria, fica ainda mais evidente e forte.
Dito de outro modo: cada versão de uma canção precisa torná-la única, original, como se a ouvíssemos pela primeira vez. Arnaldo Antunes fez isso com “Exagerado”, canção mais conhecida na voz de Cazuza, por exemplo. E quantos sentidos estão abertos em cada versão de “Mesmo que seja eu”? Erasmo Carlos, Marina Lima, Ney Matogrosso, Zé Ramalho incrustam voz ao tema e imprimem vida a sujeitos cancionais diferentes vindos da “mesma” canção.
Dito isso, quero comentar a beleza da regravação de “Tango do mal”, feita por Simone Mazzer em seu disco Férias em videotape (2015). Simone não deixa de prestar homenagem ao estilo risonho e corrosivo de Eduardo Dussek, parceiro vocal do autor Luciano Salvador Bahia na gravação feita para o disco deste: Abstraia, baby (2014). Porém, devido à sua potência sonora e à nova e bela divisão da letra na melodia, aliadas à consciência cênica da cantora, a canção recebe registro singular, original, autoral.
Aliás, creio que no caso de Mazzer, a qualidade de sua arte é tão encantadora que é ela quem imprime qualidade à telenovela onde a canção figura na trilha sonora e não o contrário. Ou seja, o “Tango do mal” de Simone não precisa da telenovela para ser legitimado em sua eficácia artística. Nos dias atuais, pensar que a canção só alcançou o sucesso porque toca na novela ou na rádio é desprezar a mudança dos tempos, é tentar manter os velhos padrões que por muito tempo tentou dominar o que não tem governo nem nunca terá: o saber com sabor que cada canção (mesmo a “mesma” em diferença) contém. A isso José Miguel Wisnik, numa referência a Nietzsche, chama de gaia ciência.
Não cabe ficar comparando uma versão em detrimento da outra. Como se uma negasse a outra. Pelo contrário, uma afirma a outra. A versão de Luciano, por ser feita na troca de turnos vocais com Dussek, remete o ouvinte aos desafios coreográficos do dançar de um tango. Como sabemos, no final do século XIX, período de ebulição da mistura que resultou no tango, no subúrbios de Buenos Aires, era comum que o ritmo fosse dançado por dois muchachos.
A versão de Mazzer, por sua vez, investe na paixão, do drama encenado na letra do sujeito que diz: “Eu vou jogar um tango / Na sua cara de bolero comedido (...) Eu vou esfregar um tango / No seu jeitinho serenata de encomenda”. Contra o comezinho, o mais do mesmo, o cotidiano, o sujeito da canção comete o passional, o não apaziguado. O confronto direto no campo do desejo.
O ouvinte baila entre destinador e destinatário da mensagem. Entra no jogo malicioso de quem diz querer imprimir “marcas e arranhões indeléveis” e incrustar “largas e profundas cicatrizes” no lugar comum das coisas pré-estabelecidas. Ao questionar o jeito superficial de fazer canção – “bolero comedido”, “reggae roots burguês”, “blues sem álcool e solidão” –, o sujeito na voz de Simone Mazzer evoca a necessidade de envolvimento do cantor com aquilo que ele canta, a fim de ultrapassar a pele das canções.
Indústria, fama, popularidade devem ser (ou não) consequências e não causas da arte. O sujeito da canção “Tango do mal” entende isso e ironiza criticamente alguns modos de fazer canção hoje. Sempre à espera do aplauso pop liquidação. Critica a própria crítica, aliás. É justamente por não esperar retorno, por mostrar, palavra por palavra, uma pessoa se entregando, que Simone Mazzer cresce como cantora e assina aquilo que canta. E quem há de nega que ela não é autora? As agências de direitos autorais? Para essas, o tango do mal.

***


(Luciano Salvador Bahia)

Eu vou jogar um tango
Na sua cara de bolero comedido
No seu nariz de rock’n roll arrependido
No seu olhar de samba reggae industrial

Eu vou esfregar um tango
No seu jeitinho serenata de encomenda
No seu estilo hip hop da fazenda
No seu apeel de rap instrumental

E o meu tango imprimirá
Marcas e arranhões indeléveis
Nesse seu quê de carimbó de Hollywood
Nesse seu ar de bossa nova do sertão

E o meu tango incrustará
Largas e profundas cicatrizes
No seu sorriso de ciranda pau no gato
No o seu império pop liquidação

Eu vou jogar um tango
Na sua cara de bolero comedido
No seu nariz de rock’n roll arrependido
No seu molejo de merengue japonês
No seu balanço de reggae roots burguês
Nesse seu blues sem álcool e solidão
Nesse seu samba sem luar sem violão

09 abril 2015

O que é canção? Márcio Bulk

Márcio Bulk

- O que é canção para você?
Um depoimento, um diálogo em que o discurso, se apropriando da escrita, a transcende e a complexifica ao adicionar elementos melódicos, rítmicos e harmônicos. A forma mais potente e fecunda de relato. A minha ferramenta mais cara para perceber e lidar com o mundo.

- De onde vem a canção?
Dos meus pais, dos meus avós, dos meus bisavós, dos meus tataravós, do afeto. 

- Para que cantar?
Para transcender, para dar sentido às coisas, para tornar mais tolerável essa vida de Jó.

- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
Juro que fiz de tudo para não ser óbvio, porém: Chico Buarque, Ella Fitzgerald e Portishead. Faltam diversos e importantes nomes nessa lista (escritores, compositores, cantores e etc.), mas como você me pediu apenas três...
Como letrista, Chico Buarque é a minha pedra filosofal. Sempre que fico inseguro quanto ao meu trabalho, eu o ouço/leio. Mais do que me inspirar, essa ação me traz um enorme alento. É como se fosse um afago, um "relaxa que tudo vai dar certo, moço".
Costumo dizer que Ella Fitzgerald é Deus com voz de pudim de leite e colo de vó. Para mim, a maior voz de todos os tempos, sempre.
Portishead foi a banda que me deu o norte artístico. Quando ouvi "Sour Times" pela primeira vez fiquei besta: o arranjo era lindo, havia elementos de música eletrônica, Beth Gibbons possuía uma voz claramente influenciada pelas cantoras de jazz e, por fim, cantava “...nobody loves me, its true / Not like you do”! Ou seja, impossível não pensar em Nora Ney cantando “Ninguém me ama, ninguém me quer / Ninguém me chama de meu amor”. Ali, tudo se costurou e, décadas depois, me permitiu desenvolver o conceito do EP “Banquete”.

02 abril 2015

O que é canção? Márcia Nascimento

Márcia Nascimento

- O que é canção para você?
Só me foi possível construir uma resposta, através de uma pequena analogia. Uma canção é um encontro, uma amizade. Amizade que traz palavras, aconchego, inquietações... Há momentos nos quais essa presença torna-se imprescindível. Por vezes é presença que se perde no tempo e que se acende rápido, nas primeiras notas ou versos que dela se escute. Deste modo me relaciono com as canções que escrevi, as que interpreto e aquelas com as quais, simplesmente, me deleito. Para além, não costumo ser amiga de quem não gosto.

- De onde vem a canção?
Vem lá, do mesmo lugar da inspiração... "Vem da transpiração" (AlziraE / Itamar Assumpção).

- Para que cantar? 
Porque navegar é preciso!

- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
Rosinha de Valença, Baden Powell, Eric Clapton (um guitar man que tornou-se cantor) são referências mais óbvias, porque sou  violonista  e cantora. Mas penso que o trabalho que faço hoje é decorrência de muitos processos profissionais/existenciais e, por isso: Victor Assis Brasil, Lucinha Turnbull e a dupla Luhli e Lucina são minhas referências fundamentais.
O primeiro show de música que assisti na vida foi Victor Assis Brasil Quarteto, no teatro da Galeria (RJ), 1973\74 (?!). Lembro das botas do Victor fazendo no chão a contagem, o silêncio, e... A MÚSICA! O JAZZ! 
Em 1977(?!), no show Refestança (Maracanãzinho-RJ), vi pela primeira vez uma mulher tocando guitarra: Lucinha Turnbull!!! Em 1979, com certeza (!), no teatro do colégio Bennett (RJ), assisti Luhli e Lucina. Lá, para além da música, toda a atmosfera, a harmonia, a beleza, o calor dos tambores, os violões, o afeto e, para além, a música! Toco violão desde a infância, mas naquela noite ficou claro que, se pudesse, faria minha vida com música.