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11 dezembro 2015

Mulher do fim do mundo



“A mulher do fim do mundo / Dá de comer às roseiras, / Dá de beber às estátuas, / Dá de sonhar aos poetas. // A mulher do fim do mundo / Chama a luz com assobio, / Faz a virgem virar pedra, / Cura a tempestade, / Desvia o curso dos sonhos, / Escreve cartas aos rios, / Me puxa do sono eterno / Para os seus braços que cantam” (Murilo Mendes, “Metade pássaro”, 1941).
Lendo esse poema de Murilo Mendes e ouvindo o novo disco de Elza Soares, lembramos das palavras de Octavio Paz em O arco e a lira: “Poesia e religião são revelação. Mas a palavra poética não precisa da autorização divina. A imagem se sustenta sozinha, sem necessidade de recorrer à demonstração racional nem à instância de um poder sobrenatural: é a revelação de si mesmo que o homem faz a si mesmo”. O sujeito poético de Murilo Mendes antecede e antever a mulher do fim do mundo que Elza Soares é. O poema de 1941 revela a mulher de 2015, numa dessas torções temporais que só a arte consegue promover.
Há canções que parecem que só podem ser entoadas por determinadas vozes. A essas canções, essas vozes conferem legitimidade. Ou autoridade, para usar o termo usado por Paz. Seja ao sujeito da canção - à mensagem da letra -, seja ao sujeito cancional - ao ser que surge na frente do ouvinte durante a audição daquela canção entoada daquele modo por aquela voz (daquele alguém cancionista).
O ano de 2015 gerou duas dessas canções: “Átimo de som”, composta por Zé Miguel Wisnik e Arnaldo Antunes e gravada por Gal Costa no disco Estratosférica, e “Mulher do fim do mundo”, composta por Romulo Fróes e Alice Coutinho e gravada por Elza Soares em A mulher do fim do mundo. Que outra voz pode dizer, do modo como diz, que “um átimo de som / num átomo de ar / pode ser capaz de disparar / o que sente o pensamento / o que pensa a sensação / antes mesmo de virar canção”, senão a voz de Gal Costa? Que outra voz pode dizer “na chuva de confetes deixo a minha dor / na avenida deixei lá / a pele preta e a minha voz / (...) / mulher do fim do mundo / eu sou / eu vou / até o fim / cantar”, senão a voz de Elza Soares?
Elza é a mulher do fim do mundo profetizada e revelada na poesia de Murilo Mendes. A presença de Elza “tem por bandeira um pedaço de sangue / onde flui a correnteza do canal do mangue”, como diz “Coração do mar”, poema de Oswald de Andrade, cantado à capela por Elza Soares na abertura do disco. “É o navio humano, quente, negreiro do mangue / é o navio humano, quente, guerreiro do mangue”, completa o poema do poeta antropófago.
Em seguida entram o instrumental e a narrativa estilhaçada da canção “Mulher do fim do mundo”. Como se a cada piscar de olhos, a cada esquina essa mulher encontrasse um novo e desconcertante significante - “Pirata e super homem cantam o calor / Um peixe amarelo beija minha mão / As asas de um anjo soltas pelo chão”. A mulher que canta e chora Lupicínio Rodrigues caminha na avenida em dia de carnaval, revirando os resíduos da festa e revelando o trágico para além da máscara. A voz de Elza Soares humaniza o ouvinte cujas máscaras sociais querem esconder a dor, o hedonismo e a hipocrisia, típicas do humano dito contemporâneo e, mesmo, moderno.
Se, como escreveu Octávio Paz, “a poesia não é um juízo nem uma interpretação da existência humana”, a palavra cantada em Elza Soares contra interpreta-se revelando criticamente o genocídio (de negros) e o feminicídio naturalizados na cultura brasileira. A vocoperformance de Elza Soares recria o sujeito criado pelos compositores, ao inserir a cantora no conteúdo. Ou melhor: sua forma de cantar é conteúdo, porque forma é conteúdo e a artista-humana sabe disso. O que ela canta é vida, porque é arte, é invenção maturada no/do ser.
Podemos utilizar o conceito de palimpsesto para tratar da voz de Elza Soares. As várias camadas de tempo, raspadas para dar lugar a outros tempos (passado, presente e futuro), do pergaminho servem de metáfora e metonímia à performance vocal. E podem ser percebidas na condensação plena de arranhões da voz de Elza Soares. Porém, diferente do papiro que perdia a informação antiga para dar lugar à informação nova, Elza não apaga o antigo. Sua voz aglutina e deixa tudo à mostra, à audição do ouvinte. Sua capacidade de reutilização do suporte dá vida a seres que não medem esforços para cantar.
Nesse sentido, podemos dizer que Elza raspa a história, sobrepõe significantes sonoros ao tempo e reinventa-se como pessoa e como cantora. Se é que uma está apartada da outra. E faz isso conectada com as novas sonoridades, com as pesquisas de cancionistas que aprenderam muito com ela. Isso é estar aberta à vida: aprender com aqueles que com ela aprendeu. Afinal, “a mulher do fim do mundo / dá de sonhar aos poetas”, escreveu Murilo Mendes.
Tudo dói. E Elza termina o disco evocando a mãe. Elza sabe que faz parte de uma história que começou há muito tempo e que continua e persistirá tiranizando toda a existência: “É o navio humano, quente, negreiro do mangue / é o navio humano, quente, guerreiro do mangue”. Elza Soares é um ser cantante a nos tirar do sono eterno, do conforto dominical, é sereia do mangue a ameaçar: “cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Dura na queda, ela dá a volta por cima, devora a dor, faz da dor o motor da luz e vai cantar até o fim: “Lá, lá, lá / lá, lá, lá”.

***

Mulher do fim do mundo
(Romulo Fróes / Alice Coutinho)

Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de samba na ponta dos pés
A multidão avança como vendaval
Me joga na avenida que não sei qual é
Pirata e super homem cantam o calor
Um peixe amarelo beija minha mão
As asas de um anjo soltas pelo chão
Na chuva de confetes deixo a minha dor

Na avenida deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do

Resto
Dessa
Vida
Na avenida
Dura
Até
O fim

Mulher
Do fim
Do mundo
Eu sou
Eu vou
Até o fim
Cantar

5 comentários:

Bruno Lima disse...

Leonardo, lamento não estar à altura para dialogar contigo sobre canção. Limito-me ao meu lugar de ouvinte e de apaixonado por música/canção, mas não possuo leituras teóricas suficientes para ser um interlocutor que você merece. Vou aprendendo contigo.

ana chiara disse...

Que lindo! Vc é um orgulho.

ana chiara disse...

Que lindo! Vc é um orgulho.

Victor Rodrigues disse...

Que legal Leonardo, descobri essa semana o poema do Murilo Mendes e bateu de imediato essa conexão Elza. E numa googlada aleatória, chego a ti, assim!

Blog instigadíssimo, apreciamos muitos discos em comum, e os outros, vou aproveitar para descobrir ;)

Um abraço!

mari disse...

Amei o texto. Me fez enxergar com muito mais profundidade uma música e um álbum que já gostava muito.
Abraço ^^